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Não leia apenas o título, eles podem induzir ao erro

Na primeira parte deste especial falamos de despolitização, fake news, robôs, comunicação não violenta. Agora partimos para conversar com outros atores que dialogam com o cenário político.

Flávia Marreiro é jornalista e editora do El País. Com a experiência de trabalhar com política há anos, tendo feito coberturas memoráveis como a da morte de Hugo Chávez, acha difícil ser otimista em um panorama de polarização que não é só brasileiro, mas global. “Nós temos pela frente uma campanha inédita com candidatos podendo investir até dinheiro público no Facebook para para fazer chegar suas mensagens customizadas aos eleitores, sem falar do mundo subterrâneo do WhatsApp do qual a gente só vê lampejos”, diz. “Por outro lado, há o enorme problema de como regular sem ser discricionário ou afetar a liberdade de expressão ou privacidade: no Brasil ou em qualquer lugar do mundo isso ainda não foi resolvido. Era necessário trabalho jornalístico intensivo e não vamos ter.”

Com as redações são cada vez mais enxutas - e o colapso da editora Abril, o trabalho jornalístico se torna ainda mais fundamental. Aproveitamos pra perguntar a Flavia quais são as melhores estratégias para combater fake news. “Os básicos: não leia só o título de matérias ou posts e, principalmente, não decida compartilhar nada só a partir daí. Mesmo títulos em reportagens na imprensa tradicional podem induzir a erro”, ela diz, citando o caso da desembargadora que acusava Marielle Franco sem qualquer base e acabou virando matriz de fake news. “O jornalista tem que redobrar o cuidado com o título e o leitor tem que se sentir responsável por aquilo que compartilha. A reportagem cita várias fontes, bate com o título? Trata-se de uma opinião? Nao se abstenha de deter uma fake news. Viu um post estranho, chame a pessoa de lado, pergunte. Vale o mesmo para o grupo de Whatsapp da família. É desgastante, mas não existe vacuo: sem operação para deter, o reino da fake news vai ser ainda pior.”

Informação e estratégia via Instagram

O @politicaparamulheres é um, entre vários perfis, criados este ano para falar de mulheres na política. Idealizado por Natasha Vasconcelos, se propõe a trocar informações e estratégias para as eleições. Surgiu quando ela fazia pesquisava no mestrado a atuação das parlamentares e que tipo de políticas voltadas para as mulheres elas têm produzido. “Verifiquei que eleitoralmente essa não era uma demanda de simples identificação. Daí criei a página para me conectar com pessoas que estavam falando/buscando saber sobre isso a fim de trocarmos para visibilizar essa temática nas eleições.”

Além da atuação na internet, Natasha tem participado de ações presenciais também. Sempre com o objetivo de demonstrar de que forma a política nos atinge e atinge nossos interesses enquanto mulheres e a importância de sermos representadas nos espaços políticos. “O feminismo, apesar de ser reconhecidamente uma luta política, tem sempre que operar à margem do sistema institucional. Contentar-se com os espaços que timidamente foram conquistados ao longo da história não tem garantido uma efetividade da pauta feminista no tocante ao direitos sexuais, reprodutivos, pela reivindicação de decidir sobre nossos corpos e nas políticas de proteção deles nos espaços públicos. Sendo assim, é cada vez mais necessário inserir esse debate na esfera pública e política a fim de que possamos pensar em políticas eficazes que desnaturalizem a violência de gênero.”

O digital entra no cenário como uma espaço para pautar assuntos que a mídia tradicional não costuma abordar. “O ativismo digital é fundamental, pois confere visibilidade para essas outras perspectivas, mais críticas.” Ao mesmo tempo, a conversa na rede é truncada. “Quando você ouve que futebol, política e religião não se discutem chegamos a um cenário extremamente problemático. Não avançamos no debate sobre o que é opinião e o que é preconceito, opinião e opressão, opinião e o que não é liberdade de expressão. Virou um imbróglio sério a questão da opinião. Se é algo que você pensa a respeito não importa quão errado foi construído, é opinião e logo vira argumento. Mas por quê?”

Para navegar em meio a isso tudo, ela elege como saída bom senso, empatia e sensibilidade de entender as diversas experiências vividas por nós. “Se você chega num debate com uma opinião formada, já está chegando errado. Chegue para ouvir. E se houver constrangimento, constranja de volta, mas com certeza, não a partir de senso comum. E é importantíssimo sabermos que informação não é conhecimento. Buscar conhecer sempre será a melhor opção para a qualificação de ideias e debates, políticos ou não. Apesar de eu ver política em tudo que a gente faz.”

“Para que a conversa aconteça, nós não podemos ser ingênuos acerca do meio pelo qual executamos essa conversa”, diz Moyses Pinto Neto

Moysés Pinto Neto é doutor em filosofia e professor na ULBRA (Universidade Luterana do Brasil). Faz afiadas análises do cenário político em seus canais na internet (Medium, Facebook), e por isso fomos conversar com ele.

É possível falar de política na internet de uma forma que renda conversas, discussões, e não apenas desentendimentos? Ou é impossível furar as bolhas ideológicas?

Nós não podemos ser ingênuos acerca da natureza da rede social. De alguma maneira nós não podemos subestimar o quanto o aparato técnico determina a qualidade da conversa. O Facebook é uma plataforma fundamentalmente narcísica, feita para que as pessoas pudessem postar fotos de si mesmas, receber curtidas e, com isso, reforçar sua autoimagem. Quando uma plataforma desse gênero é utilizada para questão política, me parece mais ou menos claro que vai haver uma espécie de desconexão. Da mesma forma, o Whatsapp, que é uma plataforma fundamentalmente de recados, acaba muitas vezes prejudicando uma análise mais complexa. Já quando a gente pensa em blogs, plataformas como Tumblr ou Medium, são alternativas interessantes para o debate político porque permitem a formação de raciocínios mais complexos. Para que a conversa aconteça, nós não podemos ser ingênuos acerca do meio pelo qual executamos essa conversa.

Quais alternativas você enxerga para que consigamos voltar a conversar? Tanto na internet quanto fora dela.

Utilizar plataformas que permitam o desenvolvimento de uma complexidade maior. Como podcasts e blogs.

Como você vê esse cenário de extrema polarização, que se soma a fake news, memes, robôs? Dá para prever o impacto disso nas próximas eleições?

Com certeza vai ter impacto, já está havendo. A extrema polarização é reflexo de duas coisas. A primeira é a disseminação da política para o ambiente privado. Ela sai daquela divisão tradicional de público privado e passa a deixar tudo confundido. É uma característica das redes sociais, em que a gente não sabe se está trabalhando, fazendo ativismo, deixando o tempo passar. E outra é o efeito bolha, esse efeito em que a polarização tende a fortalecer os dados narcísicos do indivíduo com quem é mais parecido com ele, e não necessariamente o debate público, a diversidade de ideias.

Estamos vivendo um momento em que é quase impossível distinguir a legitimidade do discurso alheio quando ele é oposto ao nosso. No que isso pode dar?

A gente já está vendo o antagonismo social crescente. Que não necessariamente é negativo porque o conflito também faz parte da democracia. A democracia existe exatamente para gerenciar de maneira pacífica o conflito, embora ela não queira com isso resolver o conflito e chegar ao consenso final definitivo, que isso seria um cancelamento da própria necessidade da democracia. Mas quando o conflito é baseado em estereótipos e caricaturas ele se torna mais problemático. Nesse sentido essa caricaturização, esse processo de transformação do discurso alheio em estereótipo, que envolve os dois lados do espectro político, tanto a direita em relação à esquerda e a esquerda em relação à direita, é problemático. Enfraquece a democracia porque enfraquece nossa possibilidade de conviver com o outro que é diferente da gente.

O Whatsapp é quase uma distopia. E, como é um espaço difícil de monitorar, ainda não entra nas análises. Como lidar com essa ferramenta tão amplamente disseminada?

É um problema grande esse porque também a criptografia do Whatsapp é uma luta política bastante acentuada, relacionada com a privacidade dos dados que a gente coloca na internet. Não dá pra dizer simplesmente que o Whatsapp está adotando a pior política possível enquanto ele garante uma privacidade absoluta e uma criptografia não quebrável dos dados. Tem toda uma corrente, que sai do Julian Assange, chamada cypher banks, que defende a ideia de que o principal valor hoje é criar uma criptografia que não pode ser explorada pelos estados, a fim de garantir a privacidade dos indivíduos. Por outro lado isso facilita a propagação de fake news, de áudios em que as pessoas se sentem com acesso a alguma informação privilegiada. Isso não vai se resolver imediatamente. Um maneira de fortalecer seria fortalecer a democracia e a educação de uma tal maneira que as pessoas tivessem mais discernimento para fazer uma clivagem entre o que elas ouvem e o que é real. Sobretudo essa ilusão que as pessoas têm de que têm acesso a uma informação muito privilegiada e completamente exclusiva, quando a gente sabe que não é assim que as coisas funcionam. Isso fortalece uma certa visão paranóica da realidade social, que é uma visão de que existe uma grande conspiração que tá acontecendo e que agora tive acesso aos bastidores dessa conspiração. É uma visão bem infantilizada não só de política mas também de mundo.

Como podemos usar a internet para lidar melhor com esse caos emocional coletivo?

Sabendo que a internet não é neutra. Nesse sentido o que se produz na internet precisa passar pela mesma clivagem crítica que fazemos no dia a dia. Hoje em dia nós somos ciborgues, no sentido de que todos estamos permanentemente hiperconectados. A internet é portável, anda conosco, estamos 24/7 conectados. Aquele mesmo discernimento que a educação nos dá em torno do que é provável ou não, o que é politicamente adequado ou não, a gente tem que usar também para o material produzido pela internet. Isso envolve uma reeducação no sentido de começar a desconfiar de produtos que, por serem feitos em vídeo, áudio ou texto, necessariamente são verdadeiros. Com o tempo as pessoas vão passar a ter um pouco esse discernimento. Tudo isso tá relacionado com um processo de politização e de educação que é um processo social complexo. E é só isso que vai fazer com que a nossa democracia fique mais qualificada.


Dani Arrais é jornalista e sócia da Contente. Natural do Recife, mudou-se para São Paulo em 2006 para fazer o Programa de Treinamento da Folha de S.Paulo. Atuou no jornal em editorias como Folhinha, Cotidiano e Tec, onde passou 3 anos como repórter, cobrindo internet e tecnologia. Também colaborou para Ilustrada, Serafina, além de ter sido editora-assistente da revista São Paulo e editora-adjunta do caderno Imóveis. Fez passagens pela revista Joyce Pascowitch e pelo portal Oba Oba, além de ter colaborado como freelancer para títulos como Crescer, Cosmopolitan, Galileu, Criativa, FFW MAG, Continente Multicultural e Noize. Mantém desde 2007 o blog Don’t Touch My Moleskine, em que fala de amor, fotografia, literatura e música e luta.