Talvez a gente precise reaprender a conversar - e a usar a internet para falar de política sem causar rupturas de vínculo e afeto. Sem querer convencer o outro de que a nossa opinião é a certa, sem revirar os olhos quando formos confrontados com uma escolha radicalmente diferente da que faríamos. De 2013 - passando pelo 7x1, o impeachment e chegando até hoje, outra Copa! - o Brasil mudou tanto. E nós mudamos junto com o país. Ficamos tão divididos que política virou assunto que é melhor não comentar muito. Rende desconforto, saída do grupo da família no Whatsapp, ou uma espécie de silenciamento mental que acionamos quando ouvimos o que julgamos absurdo.
Quando li essa semana que uma amiga está pensando em votar em dois candidatos homens, brancos, héteros, que pertencem a um um grupo de renovação política, eu, que estou pensando em fazer escolhas diferentes, me incomodei e não respondi.
Como tinha que escrever esse texto, pensei na contradição que é não querer conversar com uma amiga e falar pra geral que precisamos reaprender a conversar. E comecei a questionar. Quando foi que opiniões diferentes viraram um problema tão grande? Quando nos separamos em trincheiras opostas e perdemos a capacidade de dialogar? Quando toda conversa virou uma disputa de “eu tô do lado certo”? Será que a gente consegue ir para um outro estágio em que uma conversa sobre política pode ser saudável - ou apenas possível?
Em paralelo a esse distanciamento, observo um outro tipo de discurso que me incomoda, o de querer despolitizar a política. É o papo do gestor no lugar do político, da renovação, das iniciativas apartidárias ou suprapartidárias. Se nem a política pode ser política, o que mais poderia ser?
Outro ponto se refere aos que enaltecem mudanças pessoais como a solução completa para o coletivo. “Se eu andar de bicicleta tô contribuindo para uma cidade melhor”. Isso é uma verdade e é extremamente válido mudar atitudes e hábitos. A mudança no âmbito pessoal vira um passo importante e, idealmente, não o único. Se temos o privilégio, que possamos fazer escolhas com mais consciência e, também, lutar para que todos tenham essa oportunidade.
Pra completar a treta, quando falamos em eleições é inevitável apontar a ascensão de fake news, o fato de o Trump ter sido eleito quando a mídia praticamente ignorava essa possibilidade, os robôs usados pelos candidatos, os memes… Pior que tá fica. Parece ser esse o mote do Brasil em junho de 2018.
Como sempre gosto de fazer, fui conversar com pessoas que acompanho e admiro e que se debruçam nos temas para tentar entender melhor os cenários.
1. Despolitização e internet como trincheira
“Despolitização é um assunto urgente. Existe um trabalho de cooptação ideológica sendo feito”, afirma Diego Matos, pesquisador e curador que se debruça sobre os impactos da ditadura brasileira na arte feita no país. “Vejo com muito receio esses movimentos elitistas, financiados pelo setor privado, que procuram e estão despolitizando a política. É o que vimos com a presença notória de um apresentador de TV no debate. A presença do marketing político e do setor publicitário cooptando o público e despolitizando o debate. Sempre pela ideia de construção de um consenso. E no meu entender a arena política é feita essencialmente pelo dissenso. Ela tem que ser o lugar dedicado aos antagonismos, disputas, enfrentamentos.”
Ou seja, discordar faz parte, está na essência da política. E não significa que temos que desfazer a amizade no Facebook. E sim, entre outras coisas, aprender a usar ferramentas de comunicação que nos ajudem a ouvir o outro com empatia. A ouvir, em primeiro lugar, na verdade. Quantas vezes ouvimos apenas esperando a nossa vez de falar? Quantas vezes deixamos o outro argumentar apenas para discordar em seguida?
A internet potencializa esse tipo de comunicação truncada. Todos temos mais tempo para pensar, pesquisar, escrever uma resposta “lacradora”. O combate é para vencer, não para ouvir o outro que discorda de você. E a própria estrutura da internet nos separa em bolhas, como afirma Eli Pariser, autor de “The filter bubble” O que aparece para nós no Facebook é decidido pelo algoritmo, que apresenta conteúdo com base no que gostamos e escolhemos no passado. Isso faz com que a tendência seja reforçar ideias preconcebidas. Notícias partidarizadas fortalecem a sensação de pertencimento a um grupo. Ou seja, enquanto estamos achando que as redes sociais aumentam nossas chances de debater, a real é que procuramos nos alinhar com quem concordamos. Por isso que deu tão ruim, né?
“Existe uma diferença básica no debate que é feito nos grupos de organização comunitária, nos coletivos, nos movimentos sociais, e o debate feito na internet. O debate na internet é inútil, vazio, cheio de ódio, cheio de preguiça política, mas com reverberação suficiente para pautar os debates políticos”, afirma Adelaide Ivánova, escritora, fotógrafa e ativista. “É revoltante. É uma cilada, é uma interferência, paralisa tudo, e faz todos e todas perderam o entendimento real do fazer político, que é o contato e o debate entre SERES HUMANOS. Independentemente de sermos esquerda ou direita, não podemos esquecer que somos gente. A gente precisa voltar pra vida, deixar crescer mato na internet.”
Matos completa: “De maneira geral o Brasil sofre de um mal: ficamos anestesiados, fazendo debate político apenas às vésperas das eleições, enquanto passamos por um processo de despolitização da vida privada”. “Nessas plataformas supostamente democráticas, como as redes sociais, acaba-se dando voz a crenças, a certos sectarismos e a uma mitificação de ideias, o que não é nada interessante para o debate. Ao mesmo tempo que a gente deve incentivar as participações, elas não devem acontecer apenas em redes sociais. Devem acontecer na atividade corrente, na atividade em comunidade, em ações do dia a dia. A histeria, a gritaria nas redes sociais são extremamente ineficazes porque de fato anulam qualquer possibilidade de debate.”
2. Soluções individuais mudam a estrutura?
Em 2014, São Paulo passou por uma crise de abastecimento gravíssima, e eu dei uma descompensada. Quis estocar água, lia sem parar sobre o assunto, passei a tomar banhos curtíssimos. Até o dia em que descobri que o consumo doméstico de água correspondia a uma porcentagem bem pequena e que a indústria gastava um montante muito maior da água do Estado. Meu irmão diz que até hoje usa essa história de exemplo quando fala sobre escolhas individuais em um cenário que necessita de mudanças estruturais. Ter consciência é premissa básica para todos nós que temos acesso a informação, mas nos autoresponsabilizar por soluções que precisam ser macro é tentar apagar um incêndio usando um baldinho.
Essas escolhas individuais se pautam em uma lógica capitalista, diz Adelaide. “O capitalismo só se mantém por isso, porque separados somos fracos. O problema do posicionamento político exclusivamente identitário (aquele que não enxerga classe) é que ele luta contra uma opressão sem se interessar pela estrutura que proporciona que todas as outras opressões também existam. Combater o machismo sem combater o capitalismo é que nem secar gelo. Combater uma única opressão sem combater o capitalismo é, de forma indireta, permitir que continue a existir a estrutura sobre a qual todas as opressões se sustentam”, ela diz. “Só que combater o capitalismo significa, para muitas de nós, ter que rever, eventualmente compartilhar ou abrir mão de privilégios, e muita gente simplesmente está a fim de não ser oprimida pelo pelos homens, mas não vê problema nenhum em ter uma babá que ela não contrata com carteira assinada, que ela não conta (nem paga) as horas extras”.
Como mesclar as ações individuais com as coletivas? Como combater opressões em paralelo? Não dá pra invalidar qualquer esforço que já vem sendo feito, eles são importantes. O que tento entender hoje é como sair desse lugar e partir para mudanças maiores. Faz sentido se filiar a um partido com o qual você se identifica, vale procurar organizações comunitárias do seu bairro, é importante descobrir movimentos que usam a internet para amplificar vozes? Questões em aberto.
3. Fake news não é o problema, é o sintoma
Em um cenário que pretensamente proporciona debate quando na verdade nos agrega em bolhas, fica difícil prever os impactos de fake news e robôs nas eleições.
“É importante falar que fake news é mais um sintoma do que uma causa. As pessoas tendem a achar que fake news causa problemas nas eleições, ou degradação na política, mas o sinal é oposto. Polarização extrema da política, a negação do outro, uma comunicação mais violenta causam a fake news”, afirma Pedro Burgos, jornalista e pesquisador. Ele cita como exemplo uma situação em grupo de família em que alguém faz as vezes de checador de uma notícia, comprova que ela é falsa, contesta e recebe como resposta algo do tipo “não importa, o que importa é que aquele canalha está preso”. “A falsidade ou a não exatidão da notícia é uma detalhe, o que as pessoas estão compartilhando nas redes sociais é uma noção de identidade, que elas pertencem àquele grupo, que acha que o candidato delas é melhor, que o candidato oposto é uma pessoa ruim, que as pessoas partidárias dele não são úteis ou relevantes para a sociedade.”
Burgos desconfia do papel dos robôs nas próximas eleições. Quando estava pesquisando o uso de scripts de automação para monitorar a atuação de políticos nas redes sociais, foi procurado por jornalistas querendo fazer uma pauta sobre o Bolsonaro - a pauta era quase sempre a mesma, de que o candidato tinha um exército de robôs. Ele afirmava que sim, tem robô, como todo partido tem, mas acrescentava que não era isso que estava o impulsionando. “Essa nossa fixação por robôs e como as eleições com redes sociais podem ser fraudadas desvia um pouco o foco, deixa a gente em negação em relação ao alcance que certos candidatos têm.”
Por outro lado, Burgos acredita que os memes vão ser importantes na disputa, uma das principais ferramentas no arsenal das pessoas que vão disseminar notícia simplificada, não necessariamente falsa. “Os memes simplificam questões extremamente complexas, criam palavras de ordem e grandes verdades. E isso é um perigo. A memeficação da política leva a gente a ter um debate bem menos qualificado.”
Viktor Chagas, professor e criador do Museu de Memes, um webmuseu dedicado a compreender e documentar memes brasileiros e que circularam pelo Brasil nos últimos anos, ressalta a força dos memes. “O que mais me encanta no modelo que temos hoje nas mídias sociais, é que, mesmo diante de plataformas privadas e absolutamente opacas, conseguimos fazer circular essas pautas. Temos discutido mais sobre política nos últimos tempos e ganhado uma melhor dimensão do processo político”, ele diz. “O que me angustia é que, apesar disso, ou talvez em função disso, esse debate é ainda raso e superficial. Ele não favorece uma compreensão ampla e aprofundada do processo político como poderíamos esperar, e muitas vezes se detém no nível do senso comum”, acrescenta.
4. Comunicação não violenta e táticas de conversa
Em meio ao caos, o que podemos fazer?
“É extremamente importante que a gente use a comunicação não violenta. Mais do que servir de fiscal da web alheia, a gente tem que ouvir de maneira bem atenta, ou ler, o que as pessoas tão querendo dizer com aquilo. O Bolsonaro tem apoio e algumas pessoas acham isso repugnante, mas o que vem por trás desse apoio? Será que é uma desilusão com todas as soluções sobre segurança pública foram apresentadas? Gosto de observar, entender de onde os argumentos das outras pessoas estão vindo, para formular uma resposta mais inteligente”, diz Burgos.
Uma pergunta que podemos tentar colocar no nosso repertório é: o que está por trás de uma opinião “reacionária”? Ainda não faço ideia da resposta, mas é inevitável pensar que estamos vivendo um momento em que é difícil distinguir a legitimidade do discurso alheio. As nuances se perderam, e tudo é conflito.
Lembro do livro “Como conversar com um fascista”, de Marcia Tiburi. Um anos após seu lançamento, a filósofa escreveu considerações na Cult. Transcrevemos um trecho - e indicamos a leitura completa.
“O fascismo, hoje, adquiriu status de elemento de integração social e se baseia não só na solidariedade afetiva daqueles que negam o outro, baseados em preconceitos, e negam também o conhecimento, num gesto de ódio anti-intelectualista, como também na integração das estruturas mentais. Grupos inteiros partilham estruturas cognitivas e avaliativas que fornecem uma estranha sustentação para o comportamento e a ação. Uma visão de mundo baseada em características tais como a crença no uso da força em detrimento do conhecimento e do diálogo, o ódio à inteligência e à diversidade cultural, a preocupação com a sexualidade alheia, e muitas outras, autoriza à barbárie na micrologia do cotidiano.
Fato é que a fala do fascista é direcionada à audiência, mas ao que há de autoritário nela. Estimula-se, por meio das palavras, o que pode haver de arcaico e o violento em cada um. Daí também a glorificação da ação e a demonização da reflexão. O fascista age em nome da realização do desejo da audiência enquanto, ao mesmo tempo, o manipula. O discurso fascista é, sobretudo, um discurso publicitário que visa um receptor despreparado e embrutecido. É assim, longe do pensamento capaz de duvidar e perguntar, que o fascista-receptor passa a desejar aquilo que a propaganda fascista o faz desejar, passa a acreditar naquilo que a propaganda fascista afirma ser verdade.”
5. Como usar melhor a internet para falar de política
Diante de tudo isso, uma alternativa que acho interessante é ver como podemos usar melhor a internet para falar de política.
“O melhor jeito de usar a internet é usando-a o menos possível quando se fala de política. Textão não é fazer política, e não existe algo como ‘ativismo digital’. Falar apenas quando necessário, para unir e não para separar. Para convocar ou inspirar as pessoas a se encontrarem e se tornarem ativistas na vida real. Cada post publicado no Facebook gasta energia suficiente pra ferver duas chaleiras de água. Não sei se é verdade, vi essa info na última Bienal de São Paulo e nem fui googlar, mas acho um parâmetro. Toda vez antes de postar qualquer coisa penso se vale a pena esse gasto, essa perda de energia. Se não valer (na maioria das vezes não vale), é melhor ir fazer outra coisa.”
Adelaide Ivánova
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“Eu uso a internet para política muito mais como leitura do que com expressão. Raramente tento convencer alguém. Uso muito o papel de advogado do diabo, quero forçar as pessoas a verem as coisas, que um outro lado é possível. Olhando o que aconteceu com o Trump, eu estava lá, parecia o 11 de setembro, pessoas chorando no metrô. Ninguém conhecia quem votava no Trump. As pessoas viam os eleitores dos outros candidatos como desprezíveis. Isso é um problema. A gente pode escapar do caos emocional se achar que eleição não é o fim dos tempos. É uma parte do processo político. Sei que parece estranho minimizar as eleições, mas é importante que a gente lembre que a nossa vida política não é feita só disso, mas do que a gente compra no supermercado pra comer, até quais filmes a gente vai ver no Netflix. A gente toma várias decisões políticas ao longo da vida. E eu espero que a discussão das eleições não cerre as portas contra pessoas que estão apoiando o campo oposto.”
Pedro Burgos
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“Acredito que a internet é ferramenta fundamental para ter acesso à informação e também para análises histórico-políticas que possam fundar um pensamento ou ideia em torno de ação política. Procuro evitar informações que chegam de imediato via Facebook, Whatsapp. É sempre importante verificar a veracidade delas e até mesmo se ater a pautas mais frias, mas que adensam o debate. Procuro veículos tradicionais da imprensa, além de sites de checagem de informação, de aprofundamento, como a Lupa e o Nexo. Procuro também me alinhar entre os meus pares e entender o que estão pensando. E não me alarmar com certas notícias e comentários que aparecem, que na maioria das vezes são falsos ou hipérboles. A primeira coisa quando se informa é construir um quadro de desconfiança. Desconstruir uma ideia pra entender melhor o que se passa.”
Diego Matos
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6. Considerações finais
Na primeira versão desse texto eu tinha escrito que ia voltar à conversa do Whatsapp com a amiga para contar em quem tô pensando em votar e porquê. Dizendo que, a essa altura, acho importante fazer algumas reparações: votar em mulheres, votar em mulheres negras, votar em mulheres negras periféricas, votar em quem está fora do esquema hegemônico. Falando menos de um nome específico, mas da convicção de que nossas escolhas refletem o que a gente acredita. Se me comovi com a morte da Marielle, que eu tente, com essa ferramenta democrática, eleger outras Marielles. Menos querendo “formar” novas Marielles com o apoio de quem tem grana, e mais reconhecendo quem já está fazendo muito, só não faz parte da estrutura. Sem olhar colonizador, né?
Mandei o texto para o meu Departamento de Vai Dar Merda® particular, e como feedback eles acharam que eu estava otimista demais. Que não vai dar pra conversar porque não estamos dispostos a mudar de opinião, porque as bolhas ideológicas ficaram resistentes demais na internet, que o buraco é enorme e a gente precisa estudar e refletir pra tentar ter um panorama mais amplo. Concordei, mas ainda acho que, se a gente conseguir conversar um pouco nesses próximos 4 meses, sem querer convencer ninguém, já teremos algum ganho pessoal. Social e político, também. Então esse fim não é uma conclusão, e sim a vontade de fazer um capítulo 2 em breve. Nos vemos?
Papo online: caos, política e internet.
Dia 25 de junho, às 19:30h, online
Foto de Pétala Lopes, do Coletivo Amapoa.
O que está acontecendo com a política em tempos de internet? E com a democracia? Qual cenário se forma para as campanhas eleitorais de 2018? E o principal: o que podemos fazer em meio ao caos?
Reunimos algumas mulheres conectadas ao tema por diferentes viéses para desvelarmos o cenário brasileiro, como Daniela Arrais, da Contente.vc, que estuda o papel da internet nas relações, Nana Soares, jornalista especialista em gênero, Anna Haddad, fundadora da Comum.vc e especialista em gênero e desenvolvimento humano.
Quando: dia 25 de junho, segunda-feira, às 19:30h
Onde: online (link será enviado para os inscritos)
Para quem: apenas mulheres :)
Para participar, se inscreva. Enviaremos um e-mail em breve com mais detalhes.
Dani Arrais é jornalista e sócia da Contente. Natural do Recife, mudou-se para São Paulo em 2006 para fazer o Programa de Treinamento da Folha de S.Paulo. Atuou no jornal em editorias como Folhinha, Cotidiano e Tec, onde passou 3 anos como repórter, cobrindo internet e tecnologia. Também colaborou para Ilustrada, Serafina, além de ter sido editora-assistente da revista São Paulo e editora-adjunta do caderno Imóveis. Fez passagens pela revista Joyce Pascowitch e pelo portal Oba Oba, além de ter colaborado como freelancer para títulos como Crescer, Cosmopolitan, Galileu, Criativa, FFW MAG, Continente Multicultural e Noize. Mantém desde 2007 o blog Don’t Touch My Moleskine, em que fala de amor, fotografia, literatura e música e luta.