`

6 passos para entender o ciclo da violência doméstica

[Esse é o primeiro texto de uma série especial de conteúdo - 4 textos e um mini documentário - sobre a Lei Maria da Penha. Durante a semana de aniversário da lei, o conteúdo completo vai ficar disponível aqui.]

Entender que a mulher agredida é vítima e não tem poder algum sobre ser ou não violentada é o primeiro passo para que esse tipo de agressão acabe. O passo-a-passo da violência doméstica é muito maior do que a violência física e começa com atitudes que muita gente chamaria de amor.

1. Controle

Todo mundo já ouviu aquela frase “quem ama, cuida”. Ela pode ter sido criada com a maior das boas intenções, mas é usada para explicar comportamentos abusivos e controladores. Não use essa saia. Esse decote é grande demais. Esse batom não é chamativo demais? Unha vermelha? Sabem o que dizem de quem usa unha vermelha, né? Não estou falando isso por mal, mas para te proteger do que podem dizer. E quem não quer ser cuidada?

Em pouco tempo tem outra pessoa escolhendo o que você vai vestir, como vai falar, como se porta e até onde pode ir.

2. Reclusão

A coisa toda começa dizendo que as amigas não prestam, os amigos só esperam uma chance para transar com ela, a família não a valoriza. O único que a ama é o companheiro. É o que ele diz. Só ele a entende, respeita e quer o melhor para ela.

Para evitar brigas, ela deixa de sair, de ver as amigas, de dividir o que pensa. Ela se torna uma sombra: só vai onde ele está, só fala quando ele pergunta. Ela deixa de estudar, de trabalhar e cuida da casa, dela mesma, dele. E aí, pronto: ela não tem mais a quem recorrer.

3. Enfraquecimento

Ela já não tem amigos ou orgulho de ser quem é. Aí ele começa a dizer que ela não é interessante. Ela não trabalha, não estuda, então não tem assunto. Ela não sabe das coisas que acontecem no mundo, então tem que ouvir o que ele diz e concordar. Ela é burra e foi ficando feia e relaxada com o passar do tempo, não tem mais um pingo de vaidade. Lembra quando você passava batom, perfume e se arrumava? No armário ela não tem nada que a faça se sentir linda.

Nas brigas, ele diz que nenhum homem vai querer estar com ela. Olha só pra você. E ainda relembra que ela está sozinha: sem família, sem amigos, sem grana.

4. Violência física

Nesse momento a mulher já não é mais uma mulher. Ela é um corpo vazio, sem alma, sem orgulho, sem vontade. Ela não tem mais forças para brigar, nem discutir. E aí, em silêncio, ela apanha.

Ela não sabe mais se fez algo para merecer aquilo, se é algo normal ou se ela deveria ir embora. Quando pensa em ir embora, ela lembra que não trabalha, não estuda e não tem nenhum laço com ninguém. Para onde ela iria? O que as pessoas vão dizer?

A vergonha e o medo paralisam. Ela continua em casa.

5. Arrependimento

“Olha o que você faz comigo”. Essa é a explicação que o homem dá. Ela faz com que ele perca a cabeça porque a ama demais. Não é isso que a gente vê nos contos de fadas? O príncipe faz tudo que é necessário para estar com a princesa? Até prendê-la em um castelo, se for preciso? Aquilo é amor. A gente já viu na novela. Não era o que diziam sobre o menino que te batia na escola? Ele batia porque queria chamar sua atenção.

Ele a ama. Ama como mais ninguém poderia amar. Ela perdoa. Fica. Tenta de novo.

6. A bola de neve

Essa é a história de muitas das nossas avós, das mulheres periféricas e das ricas. Ela não vai embora, o ciclo continua, ela segue fraca e ele forte. Ela apanha mais uma ou duas vezes. Vai à delegacia e perguntam se ela quer mesmo destruir a vida do pais dos filhos dela por apenas um errinho que ele cometeu. O errinho que um dia mais tarde pode deixa-la cega, paraplégica e com marcas emocionais que nunca serão apagadas. O errinho que pode matá-la.

Não existe isso de “olha pra ele com cara de ‘nunca mais faça isso'”, como disse o padre. Não está na mão dessa mulher quebrar o ciclo. Ela não está forte como eu ou você. Ela está fraca, caída, na sarjeta emocional. Ela não tem forças.

E não ter forças não pode ser traduzido em algo possível de ser visto. Milhares de mulheres escondem os roxos, fingem que estão bem e seguem a vida. Vão ao trabalho, frequentam festas, saem para jantar. Sorriem. Porque mesmo no meio de tanta dor as pessoas tentam encontrar um respiro, um pouco de esperança.

Foi assim com Luiza Brunet – a agressão não foi o primeiro “escândalo” divulgado pela mídia -, foi assim com Luana Piovani – que o juíz disse que era forte demais para ter sido vítima – e é assim com mulheres que a gente nem imagina e que não têm força para sair do ciclo porque estão fracas e porque sabem que o mundo vai jogar a culpa em suas costas.

O ciclo da violência doméstica tem que ser quebrado por toda a sociedade. E o primeiro passo é não dizer que a responsabilidade de fazer isso é da vítima.


No dia 7 de agosto, domingo, a Lei Maria da Penha completa 10 anos. Por isso, aqui na Comum, decidimos dedicar a semana a assuntos ligados à violência doméstica, em uma jornada especial de conteúdo. Serão 4 textos e um mini documentário sobre a lei, dirigido pela Luiza De Castro e pela jornalista Nana Soares. Se quiser acessar todo o conteúdo da trilha, clique aqui.


Texto publicado originalmente no portal Ondda


Carol Patrocinio é jornalista e divide seu tempo entre escrever para diversas publicações sobre assuntos relacionados ao mundo feminino e ao feminismo, como o Ondda, seu canal no Medium e consultorias para negócios que querem falar com as mulheres.


A assinatura mensal da Comum dá acesso a parte fechada, que inclui as trilhas, o fórum, encontros só pra comunidade (on e offline) e desconto em encontros abertos ao público. Você pode pagar R$40/mês ou financiar uma mina que não possa pagar, com R$80/mês. Saiba mais aqui.