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As meninas são ensinadas a odiar seus corpos

Quando eu tinha 6 anos, minha mãe me colocou no ballet. Lembro como se fosse hoje. Disse que eu precisava ser mais “feminina” (me pergunto o que isso significava pra ela na época). Sofri horrores. Sentia que eu não me encaixava, que aquilo não era pra mim. Me comparava o tempo todo com minha irmã mais nova, que adorava as aulas e era suave e delicada como ninguém. Ia para a escola duas vezes por semana chorando, porque minha mãe dizia que era assim que tinha que ser.

Mas a verdade é que eu odiava o ballet porque, antes de tudo, aprendi a odiar meu corpo.

O padrão de beleza vigente e a vergonha de errar

Ninguém precisava me explicar nada. Estava estampado nas capas das revistas, nos comerciais de TV, no modo como minha mãe se arrumava e nos papos dela com outras mulheres. Existia um padrão de beleza admirado e desejado pelas pessoas, quer elas dissessem isso com todas as letras ou não.

Desde muito pequena, no ballet, eu me lembro de olhar com admiração para a menininha magrinha, meiga, loira e de olhos azuis que se movimentava como uma fada, de tule cor de rosa e coque no cabelo. Ela se mexia com muita delicadeza e cuidado. Flutuava pelo salão, desafiando a gravidade. Me lembro de pensar como era possível que ela dançasse a aula toda sem suar ou bagunçar aquele cabelo dourado. As mães e as tias da escola de dança sempre a elogiavam muito, “que princesinha”, diziam.

O problema é que eu era totalmente diferente dela. Gordinha, um bocado desajeitada, morena e de olhos castanhos.

Ninguém nunca me disse que os corpos são diferentes e que tudo bem, é assim que as coisas são. Minha mãe nunca me fez olhar com curiosidade pras diferenças e entender que não tem certo e errado, que existe um mundo de possibilidades. Enquanto ninguém me dizia, o que eu depreendia do mundo era que o legal era ser uma fada nórdica (muito embora elas fossem quase seres míticos, minoria na minha classe de ballet) e tudo o que não fosse isso era médio ou ruim, era incompleto.

O outro recado que a experiência me dava era que o ideal de mulher inclui certas qualidades. Alguns adjetivos cruciais faziam daquela menina uma princesa de brilhar os olhos dos pais: a doçura, a delicadeza, a graça e a leveza. Estava na cara que andar esquisito, ser forte e bruta, não se entender com a meia calça e o collant com certeza não eram boas coisas. Quando eu via a Bruna dançar na aula de ballet, entendia o que minha mãe queria dizer com a palavra “feminina”.

Foi assim que começou a minha relação de ódio com o meu corpo. Ele não era o que deveria ser. Ele era menos bonito. Ele não se desenvolvia, se expressava como o esperado. Ele era menos capaz, inábil. Foi aí também que começou a minha trava com a prática de esportes.

O raciocínio era bem simples e coerente. Se meu corpo, minha aparência, não eram bonitos, para que me expor com roupas de esporte e collants apertados? Se eu não tinha as habilidades necessárias, pra que tentar? Na escola, principalmente, evitar qualquer exposição desnecessária era palavra de ordem. O que eu fazia (fiz durante anos a fio) era básico e instintivo: me proteger.

Nessa época, já um pouco mais velha, passei também a olhar para os esportes como coisa de menino. Assitia eles desenvoltos na quadra (não todos, mas a maioria), com movimentos livres e espaçosos, sem medo de errar. Eles tiravam a camiseta depois dos jogos de futebol, riam e se divertiam a cada aula de educação física como as meninas nunca faziam. Cresci achando que eles tinham nascido fisicamente mais preparados.

O que nunca me disseram é que ninguém nasce sabendo coisa nenhuma. E não é diferente com os esportes. Os meninos só tinham mais habilidades aos 12 anos porque passaram a infância toda explorando, praticando sem receio. Não se preocupavam com a doçura e a elegância de cada movimento, com a saia subindo e o collant entrando na bunda. Os cabelos espanando do rabo de cavalo. Com os pelos crescendo no sovaco e a menstruação que podia estar manchando a calcinha para a vergonha de toda a nação.

Meninas são ensinadas a se preservar. A tomar cuidado. A ser femininas até nos esportes, praticar na medida, sem perder a compostura. Aos meninos é dado o direito de errar. De explorar, de cair, se machucar, se permitir. Desenvolver o corpo sem medo.

É necessário romper com a história da geração de mulheres antes de nós

Se ninguém ensina o contrário para as meninas, o mundo, por entrelinhas, as ensina a travar uma batalha eterna com o próprio corpo. É assim que é, na grande maioria das vezes.

Sei que minha mãe fez o melhor que sabia. Ela não teve a sorte que eu tive mais velha, de encontrar mulheres incríveis no caminho, que abrissem os olhos dela e dissessem que o que a gente entende por feminino é uma construção cultural aprisionante.

Que tudo bem ser menina e não querer fazer ballet, e tudo bem também não ser uma fadinha loira com glitter e asas. Que o importante é aceitar e acolher o nosso corpo como ele é. Que ele não está aqui para servir ninguém ou agradar as pessoas.

Ela não soube, nem eu soube desde pequena, mas minha filha vai saber. Que o corpo dela é perfeito e bonito como é, assim como o modo que ela se expressa através dele.

Vou tentar (com carinho, sendo esquisita, desajeitada e engraçada ao praticar com ela todos os esportes que ela quiser arriscar) mostrar que corpo não é fim, é meio. Que ele é um organismo vivo incrível e potente, que dá a ela a chance de fazer tudo o que ela bem entender. E isso é o que realmente importa.


Texto originalmente publicado no Medium da autora.


Anna Haddad é advogada de formação e jornalista de coração. Hoje escreve para vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado para mulheres.