Mediante minha genuína paixão por carros desde sempre, começo minha reflexão com o seguinte exercício: suponha a reação de uma pessoa ao entrar em uma oficina mecânica no Brasil em que há apenas mulheres trabalhando.
Dificilmente esse “fato” não seria acompanhado por um profundo estranhamento e, quiçá, uma rejeição por parte de muitos clientes. Provavelmente há muitas oficinas nas quais todos os funcionários são homens e isto dificilmente é acompanhado de uma indagação do tipo: “Nenhuma mulher se interessou em trabalhar aqui?” ou “Quais foram/são os obstáculos que as impediram de tentar/conseguir?”.
A predominância de homens e mulheres em diferentes funções é fruto do que chamamos de divisão sexual do trabalho, que, no senso comum, é vista como algo de menor importância ou associada a fatores biológicos - ou seja, há uma naturalização. A divisão sexual do trabalho reproduz a subordinação das mulheres em determinadas esferas da sociedade, definindo de forma binária as qualificações e perfis para algumas funções.
Às mulheres caberiam áreas que se aproximassem mais da esfera privada e que envolvam cuidar de outrem, reproduzindo sua “natural” aptidão para maternidade. Os homens, “nascidos” para atuar na esfera pública e de forma mais racional, estariam mais bem preparados para ocupações em lideranças, tecnologias e até mesmo nas forças armadas. Relações de gênero são relações de poder e o ambiente de trabalho talvez seja um dos que melhor possam exemplificar o pressuposto desenvolvido pela historiadora Joan Scott e compartilhado por tantos outros pesquisadores. Para ela, aproximando-se da concepção de Michel Foucault, o poder não é unificado, mas sim disperso, composto de forças desiguais e permeado por incoerências.
É assustador e vergonhoso para a sociedade brasileira que nós, mulheres, tenhamos atingido em 2016 a “incrível marca” de 11% em cargos de liderança, conforme aponta pesquisa do International Business Report (IBR) – Women in Business.
Nos 45 países os setores que possuem mais mulheres em posição de liderança são os de educação e serviços sociais com porcentagem pouco acima dos 50%. Se pensarmos que a isso somam-se desigualdades de cunho racial, social, regional e outras percebemos que os avanços, que longe estão de ser lineares e contínuos, não são suficientes para nos alegrar.
Cor da pele e padrão de beleza enquanto prisões
Questões de raça e classe acentuam as disparidades, colocando as mulheres negras em posições ainda mais desfavoráveis. No Brasil, 15% da ocupação feminina é como trabalhadora doméstica, cuja predominância é de mulheres negras conforme apontado por pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). A associação ainda arraigada na nossa sociedade entre trabalho doméstico e pessoas negras remete às máculas que séculos de escravidão nos deixaram.
As empregadas domésticas também dialogam com outra vinculação estabelecida social e culturalmente: a de que a mulher é quem cuida dos afazeres de casa.
Nesse sentido, se a ideia vigente é a de que trabalhadores ideais são definidos como aqueles que estão integralmente à disposição da empresa, as mulheres acabam sendo rebaixadas à força de trabalho secundária. Enfrentamos ainda, por parte de muitas empresas, a hesitação em contratar mulheres para cargos de liderança, pois sobre nós pesa a visão de única responsável pelo “gerenciamento do lar” e maternidade. Mais uma vez a velha hierarquização do público x privado nos desfavorecendo.
Como romper com essas premissas?
É interessante também perceber como a exigência de um padrão estético mostra-se ambivalente. Um padrão que marginaliza aquelas que não se enquadram nele (gorda, velha, negra, etc), sem deixar de penalizar as que se encaixam. Dito isso, arrisco um palpite: de que a mulher bem-sucedida e bonita (segundo o padrão vigente) está mais suscetível a comentários duvidando de sua competência do que estaria um homem na mesma situação. "Quem ela seduziu para conseguir esse cargo?", "Está na cara que ela só tem pose!". Sabemos que o capitalismo se alimenta da competitividade e isso é notório, muitas vezes voraz, no ambiente de trabalho. Devemos admitir, porém, que as conotações que isso adquire sobre mulheres, trans, negras, pobres e demais alvos de discriminação são particularmente mais cruéis.
Libertação por meio do trabalho
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) entende a atividade profissional como um meio pelo qual as pessoas podem superar a situação de pobreza e atingir condições de vida dignas no âmbito. Nesse ponto, nós, mulheres, que tivemos vários direitos reconhecidos e (precariamente) assegurados em momentos tardios, enfrentamos problemas adicionais para alcançar nossa realização profissional. Assédio sexual, assédio moral, jornada dupla/tripla e violência doméstica são alguns dos problemas vivenciados por nós que afetam negativamente nossas carreiras e nossas vidas como um todo.
Dentre as vítimas de assédio sexual e moral, as mulheres são a maioria de acordo com diferentes pesquisas. Apesar de distintos, ambos podem se suceder em um mesmo cenário no qual, por exemplo, mediante a recusa da vítima às solicitações sexuais do indivíduo assediador, este passa a difamar, a cercear a atuação e o desenvolvimento profissional da pessoa assediada de diferentes formas, configurando assédio moral.
A objetificação da mulher e a pressuposição do binarismo homem-ativo vs. mulher-passiva contribuem para perpetuação do problema.
Garantir a proteção de trabalhadores vai além da simples manutenção dos empregos, significa proporcionar condições dignas para a realização das atividades desempenhadas. Alcançar a autonomia financeira, inclusive, consiste em um aspecto que contribui para a mudança em um quadro de violência conjugal, que é apenas uma das possibilidades de violência sofrida pelas mulheres no âmbito doméstico. Ou seja, âmbitos variados influenciam e são influenciados por aspectos inerentes às relações de trabalho.
O combate à marginalização das mulheres na atuação profissional não será eficaz se nos restringirmos a casos de sucesso, consagrando heroínas. Denúncias são essenciais para inibir agressores, assediadores e afins. Só que precisamos de mais. Ações institucionais, continuidade e ampliação das políticas públicas, efetiva inserção destas questões em organizações sindicais são alguns exemplos.
Nesse momento em que nos acusam de “mimizentas”, diminuindo nossas reivindicações, negligenciando nossos direitos, estamos ficando mais politizadas (e cada vez mais cedo) e devemos impedir que o ambiente de trabalho esteja alheio a isso tudo. Para que não exaltem a cultura do estupro, ofendendo uma parlamentar; para que não cogitem que mulheres devam receber menos por engravidarem; para que não tenhamos o machismo na gestão pública; para que o assédio seja caracterizado como tal (evitado e punido devidamente).
Assim, estaremos nas oficinas, na gestão, no legislativo. Escolhas reais. Carreiras diversas e sólidas. Representatividade, equidade. Garantir o trabalho digno a todos é obrigação de quem defende uma sociedade mais justa.
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Tatiane Reis é mentalmente irrequieta e com interesses muito diversos. Cursou a graduação e o mestrado em História (com foco em estudos de gênero), além de lecionar na educação básica, cursa administração. Sonha com o dia em que também poderá se dedicar à música. Contribuir intelectual e profissionalmente com a sociedade é o que a impulsiona. Considera a leitura e a escrita as melhores ferramentas para isso. É do Rio mas sempre quis ser do mundo.