`

VA-GI-NA: por que a gente sabe tão pouco sobre ela?

Quando a gente tá na escola e tem aula de biologia basta alguém falar as palavras pênis ou vagina para que os risos comecem. A gente entende isso quando se tem 12 anos, mas conforme se vira adulto, a vagina continua sendo motivo de risos e o pênis se torna algo belíssimo, quase sagrado. Mas a culpa disso tudo não é totalmente nossa. Ufa!

Desde o começo dos tempos as coisas foram construídas de um jeito bem estranho e o corpo feminino foi relegado ao papel de complicado. Só que, na verdade, só faltava empenho de quem queria entender o corpo e a sexualidade da mulher.

“A nossa falta de conhecimento do nosso aparelho genital se dá pela nossa criação católica cristã de repressão do que é feminino. Sem contar que nunca somos estimuladas a nos olhar no espelho e quando fazemos somos estimuladas a achar a vulva feia, o que não é verdade” - Ana Thais Vargas, especialista em obstetrícia e ginecologia focada em parto normal e humanizado

Por que mulheres ficam “molhadas” com qualquer tipo de pornografia?

Homens sentem prazer com a manipulação do pênis. Para a reprodução eles usam o mesmo órgão da mesma forma. Os estudos sobre desejo feminino, por exemplo, buscavam informações medindo quanta lubrificação uma mulher fabricava. Eles colocavam um filme pornô, a mulher ficava “molhada” e aí eles tinham respostas. Eles nunca imaginaram que, para quem tem vagina, prazer e reprodução são coisas diferentes.

Desse tipo de experimento vem a ideia de que mulheres sentem tesão tanto por homens quanto por mulheres, já que não importa o filme que os pesquisadores coloquem, elas sempre produzem lubrificação. Só que em 2009, com o estudo “The clitoral photoplethysmograph: a new way of assessing genital arousal in women”, parte do acervo da Biblioteca Americana de Medicina do Instituto Nacional de Saúde, entendeu-se que eles estavam buscando respostas da maneira errada: a mulher não sente prazer no canal vaginal, mas no clitóris — mesmo quando há penetração o clitóris é estimulado e o canal vaginal tem pouquíssimas terminações nervosas, como a gente vai ver mais pra frente.

Depois de entender que a excitação feminina deve ser medida pela ereção do clitóris os especialistas passaram a sugerir que a lubrificação é como uma defesa irracional para evitar que o órgão se machuque: qualquer cena de sexo deixa a mulher pronta para ele porque temos uma história de abusos sexuais, machucados e sequelas. É a seleção natural nos protegendo.

Clitóris é puro prazer

Ele é a única parte do corpo humano que tem o prazer como única função. ÚNICA! São mais de 8 mil terminações nervosas em nove centímetros e 18 estruturas anatômicas entre a parte interna e externa — o pênis tem até 6 mil terminações -, por isso algumas mulheres sentem como um choque quando ele é tocado diretamente. “Como o clitóris é um órgão bastante inervado ele tem um papel importante na excitação feminina. Ele é feito de tecido erétil, que incha, se enche de sangue e torna-se rígido quando excitado, semelhante ao que acontece no pênis. Como a parte externa e visível do clitóris é pequena nem sempre isso é fácil de ser visualizado”, explica a especialista em Ginecologia e Obstetrícia Heloisa Brudniewski.

Hipócrates acreditava que a mulher só ficaria grávida se chegasse ao orgasmo na relação sexual. Aí veio, em 1875, o biólogo belga Edouard Van Beneden e acabou com a festa dizendo que uma coisa não tinha ligação com a outra. Depois dele veio Freud dizer que mulheres maduras conseguiram transferir o orgasmo do clitóris para a vagina e que o orgasmo clitoriano era infantil — ainda vou escrever um texto só sobre como essa ideia acaba com a nossa vida sexual. Além de ter que aguentar tudo isso, o clitóris foi apontado como “a marca do diabo” durante a caça às bruxas — se ele fosse grande, você morria -, culpado pelo lesbianismo, ninfomania, icterícia, cegueira, morte prematura e desequilíbrio mental.

Foi só nos anos 1960 que o clitóris passou a ser encarado como parte importante da sexualidade feminina. A dupla de cientistas Masters e Johnson notou que a excitação feminina tinha uma resposta diferente com o estímulo clitoriano. Depois disso, em 1998, a urologista australiana Helen O’Connell conseguiu provar a existência da parte interna do órgão, que teve sua primeira representação em 3D em 2009.

O clitóris ao passar dos anos

1559 — “Um órgão lindo e muito útil”, disse o anatomista italiano Mateo Realdo Colombo ao descobrir o clitóris, mas seu estudo não ganhou a notoriedade do seu contemporâneo Andreas Vesalius, que havia publicado, em 1543, o De Humani Corporis Fabrica, um atlas de anatomia, sem a presença do órgão.

1659 — O anatomista holandês Regnier de Graaf descobre (pela segunda vez) o clitóris e cria a tese de que sem prazer clitoriano nenhuma mulher aceitaria fazer sexo. Essa tese não foi publicada e acabou esquecida.

1844 — Desenhos do clitóris foram publicados pelo anatomista alemão Georg Kobelt (terceira vez). Para a publicação nos livros oficiais os desenhos ganharam um quê de fantasia e não o representavam verdadeiramente.

1900 — O clitóris aparece pela primeira vez na bíblia do cirurgiões, o Gray’s Anatomy (quarta vez).

1948 — A nova edição do Gray’s Anatomy, editada por Dr. Charles Mayo Goss, é publicada sem menção ao clitóris.

1966 — A dupla de cientistas Masters e Johnson voltou a falar sobre o clitóris no primeiro estudo sobre Resposta Sexual Humana. E pela primeira vez ele não é mais esquecido!

1998 — A urologista australiana Dra. Helen O’Connell publicou no periódico médico New Scientist a descoberta de que o clitóris ia muito além da parte externa, criando novos contornos para o órgão.

2009 — Os pesquisadores franceses Dr. Odile Buisson e Dr. Pierre Foldès publicaram as primeiras imagens 3D de um clitóris estimulado e ereto.

Qual o problema da palavra vagina?

Travesseirinho, repartida, fenda, área vip, peludinha, caverna, pombinha, procurada, concha, borboleta, fruto proibido, perereca, xereca, prexeca, velcro, periquita, xampola, taioba, xoxota, popoca, pitchulinha, racha, suvaco de coxa, esfiha…

Todas essas palavras acima falam sobre a mesma coisa: a vagina. Se o tema é espinhoso, o nome não pode nem ser dito. “Não nos tocar, não saber onde as coisas ficam, ser considerado ‘feio’ ou ‘deselegante’ que nossas mãos toquem a vulva, tudo isso reprime e impede o auto-conhecimento”, diz a especialista em obstetrícia e ginecologia focada em parto normal e humanizado Ana Thais Vargas. E dar o nome certo ao órgão faz parte desse conhecimento.

Ameba cabeluda, animal sangrento, azeda, bacalhau mijado, fedorenta, feiosa, baratinha, bixiguenta, gambá e ostra mijada também são nomes encontrados entre os mais de 4 mil registrados apenas na Desciclopédia. Eles não têm nada de carinhoso ou elogioso e tornam ainda mais difícil gostar da vagina ao lê-los.

Enquanto isso o pênis ganha nomes como cobra, benga, espada, pau, britadeira, piroco, pistola, taco, tora e afins. A gente ensina aos meninos, subliminarmente com esses nomes, que a função deles é extremamente agressiva, para abrir caminho, e ainda espera que a vida sexual deles seja interessante… tsc tsc.

Vaginas não ficam largas

O canal vaginal é elástico. Ele pode aumentar até 10 vezes e depois voltar ao tamanho normal, em média 2 cm, sem qualquer problema.

Para fazer essa mágica, ele tem poucas terminações nervosas — ou o parto, por exemplo, seria de uma dor insuportável para a mulher — e por isso mesmo a penetração não dá a mulher o mesmo prazer que o clitóris. “A vagina é um canal formado por músculos. Então imagine o bíceps: ele é capaz de trabalhar em um conjunto em que conseguimos esticar braço e antebraço inteiramente, como até dobrar um em cima do outro, é uma elasticidade gigante! Com o canal vaginal é a mesma coisa: o trabalho muscular é capaz de expandir em momentos como excitação sexual ou para passar um bebê por ele. E como também acontece com o bíceps, com exercícios é inclusive possível aumentar força e/ou alongamento”, explica Mariane Menezes, mestre em ciências, obstetriz, parteira domiciliar e professora da Escola de Medicina da USP.

A lenda de que a vagina fica larga faz com que mulheres se machuquem para tentar dar mais prazer ao parceiro. Em alguns lugares do país é usado pó de pedra pome, que tira a umidade do canal vaginal e o deixa ressecado. Durante o sexo são criadas feridas, cortes e, em alguns casos, a mulher chega a sangrar.

Ponto do Marido

Seguindo na mesma ideia de que a vagina pode ficar larga, o ponto do marido é uma maneira de fechar o canal vaginal depois do parto com episiotomia, que é um corte na musculatura do períneo (por indicação da ONU deveria ser evitado e, de acordo com a OMS, é considerado mutilação genital feminina), uma prática ainda de rotina no Brasil. Muitos médicos o fazem, inclusive, sem necessidade alguma, já que bastava esperar mais algum tempo para que a dilatação se completasse.

Para reverter o quadro instantaneamente os médicos se utilizam dessa manobra. Ela é um ponto a mais para fechar o corte no períneo e deixar o canal vaginal mais estreito do que era anteriormente e dar mais prazer na penetração ao novo papai. “É preciso frisar que o ‘ponto do marido’ feito no períneo de uma mulher é uma expressão extremamente machista que quer dizer que o corpo, a vulva e vagina daquela mulher pertencem a ele e que esse ponto deve ser feito para garantir que a vagina dela ficará ‘apertadinha’ depois do parto para melhor prazer dele. Não temos nada na ciência ultimamente que justifique essa mutilação na genitália feminina no momento do parto”, completa Vargas. Depois desse procedimento muitas mulheres sentem dores o tempo inteiro e perdem totalmente o interesse na vida sexual.

Vagina de laboratório

Uma em cada 4.500 pessoas que nascem com vagina sofrem da Síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH), que faz com que o órgão não complete seu desenvolvimento, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Para reverter o quadro, cientistas das universidades Wake Forest e Metropolitan Autonomous, na Cidade do México, criaram uma maneira de produzir tecido vaginal por meio das células de cada paciente. Esse tecido é utilizado para construir, em laboratório, uma nova vagina capaz de gerar orgasmos e ter funcionamento normal.

Mutilação genital, uma cirurgia criminosa

Há 10 anos estimava-se que mais de 100 milhões de pessoas sofreram uma mutilação genital. A ideia é reduzir o desejo sexual feminino e garantir que a virgindade seja guardada até o casamento. Países como Mali, Guiné, Serra Leoa, Sudão, Egito, Eritreia e Somália têm índices de mutilação acima de 80%, apesar do procedimento ser apontado como uma violação dos Direitos Humanos. A prática também existe em alguns locais da Europa e Reino Unido.

São três tipos de procedimentos praticados antes que se complete 10 anos de idade: a clitoridectomia, que é a remoção parcial ou total do clitóris; a excisão, que também remove total ou parcialmente os pequenos e grandes lábios; e a infibulação, o estreitamento do canal vaginal com ou sem remoção clitoriana. Considera-se também mutilação genital feminina qualquer outro procedimento na genitália que não tenha necessidade médica.

Na história, a mutilação genital aparece primeiro na Inglaterra: em 1865 o Presidente da Sociedade Inglesa de Medicina, Baker Brown, criou a teoria de que o clitóris era responsável pela histeria, epilepsia e loucura, portanto deveria ser retirado. Ele foi criticado pelos colegas e demitido, mas o”tratamento” ainda foi utilizado até meados de 1920.

Quando pensamos em mutilação logo pensamos na Índia ou países africamos, mas ela acontece muito mais perto do que gostamos de imaginar.Além da episiotomia, que é considerada pela ONU um tipo de mutilação, ela acontece em países desenvolvidos fantasiada de necessidade médica.

Uma em cada 2 mil crianças nasce “genitalmente anormal”, seja com o clitóris aumentado ou com os lábios colados, de forma que fica difícil entender se aquele órgão é um pênis ou uma vagina. Chamadas de intersexuais, essas crianças passam por cirurgias em que seus clitóris são retirados para que o genital não fique “ambíguo” por questões estritamente estéticas. Para piorar, além da criança não ter o direito de escolha — isso poderia esperar até a maioridade civil — essas cirurgias causam dor, insegurança sexual e prejudicam as possibilidades reprodutivas.

Não é a vagina que faz uma mulher

“Identidade de gênero é a característica segundo a qual cada pessoa se identifica como homem ou mulher”, explica o endocrinologista Dr. Louis Goren, da Universidade de Amsterdam, em seu estudo publicado na The New England Journal of Medicine. E completa: “A incongruência entre identidade de gênero e fenótipo físico recebe o nome de distúrbio de identidade de gênero”. O resumo é que pessoas são muito mais do que fenótipos, órgãos reprodutores e hormônios.

Nem toda mulher nasce com vagina e nem todas as pessoas que nascem com vaginas são mulheres. Algumas nascem intersexuais e outras nascem com pênis. Ser mulher vai muito além da vagina e como disse Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Isso acontece por meio de experiências, vivências e a maneira que você se socializa com outras pessoas.

As causas da transexualidade são desconhecidas, porém muita gente busca respostas biológicas ao fato. Autópsias realizadas em pequeno número de pessoas que nasceram com pênis mas se identificavam como mulheres mostraram padrões de diferenciação sexual tipicamente femininos em duas áreas do cérebro (núcleo estriado terminalis e núcleo uncinado hipotalâmico). Pesquisadores apontam que a transexualidade pode estar associada a alterações da arquitetura cerebral e garantem que não há nenhuma ligação com alterações hormonais, anormalidades cromossômicas ou fatores psicológicos influenciados por dinâmicas externas.

O importante, na verdade, nem é encontrar uma resposta para isso. A gente não tem resposta para tantas coisas e segue acreditando nelas, como questões religiosas, por exemplo. O que importa é respeitar o outro e entender que a nossa vivência não pode ser medida por apenas uma régua. Quem somos nós para dizer como o outro deveria se sentir ou viver?

Ovos de ouro

Quem tem útero nasce com um número contado de óvulos. É por isso que algumas empresas estão oferecendo para que suas colaboradoras congelem os seus — além de não ter que lidar com um monte de mulheres engravidando e eles tendo que arcar com licença maternidade, não vamos ser ingênuos.

Durante a 16ª e 20ª semana de gestação, quando ainda somos fetos, os de fenótipo feminino já carregam cerca de 7 milhões de óvulos. Na adolescência esse número já caiu para 500 mil. Dentre eles são selecionados naturalmente os que serão ovulados ou descartados. Esse plano numérico é chamado de menacme. “Os ciclos de liberação do óvulo variam — como os ciclos menstruais. Até o fim da liberação dos óvulos difere entre as mulheres, do climatério chegando na menopausa. O que sabemos é que a fertilidade da mulher tem seu pico no início da vida adulta e declínio a partir de então, mas não dá para prever quando isso irá acontecer”, explica Menezes.

Se você não sabia disso não se desespere! A maior parte das mulheres não entende bem como isso funciona. Um estudo da Escola de Medicina de Yale mostra que 40% das mulheres acredita que continua produzindo óvulos durante seus 20 e 30 anos.

Segundo um estudo conduzido nas universidades de Saint Andrews e Edinburgo, na Inglaterra, 90% desses óvulos são expelidos durante os 30 anos. Aos 40 anos a mulher tem apenas 3% do número inicial. Isso se dá por uma questão simples da natureza, como explica Vargas: “Como fêmeas, devemos gestar, parir e criar nossas crias na fase em que o corpo está mais saudável e em pleno funcionamento, por isso essa programação: dos 12 anos aos 48 anos, na média brasileira.”


Texto publicado originalmente no Polemiquinhas com a Carol


Carol Patrocinio é jornalista e divide seu tempo entre escrever para diversas publicações sobre assuntos relacionados ao mundo feminino e ao feminismo, como o Ondda, seu canal no Medium, vídeos no Youtube e consultorias para negócios que querem falar com as mulheres.


Sexualidade: a trilha da mês

A trilha da Comum desse mês é sobre sexualidade feminina. Vamos explorar o tema juntas, através de textos, vídeos, conversas no fórum e práticas. O percurso começou em setembro e está disponível integralmente só pras assinantes. Se quiser saber como se tornar uma pra ter acesso às trilhas, ao fórum e os encontros fechados, clica aqui e vem com a gente. 

O encontro é aberto a todas as mulheres. Saiba mais aqui.


A assinatura mensal da Comum dá acesso a parte fechada, que inclui as trilhas, o fórum, encontros só pra comunidade (on e offline) e desconto em encontros abertos ao público. Você pode pagar R$40/mês ou financiar uma mina que não possa pagar, com R$80/mês. Saiba mais aqui.