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Microcefalia, aborto e a ideia da mãe guerreira

Quando eu descobri que estava grávida da Beatriz, eu já estava prestes a completar 24 semanas – um misto de lerdeza, com ciclo irregular e a impossibilidade de estar grávida por fazer uso de anticoncepcional corretamente -, e para quem já passou por isso, sabemos que as primeiras semanas são muito importantes para o desenvolvimento da gravidez, é quando tomamos suplementos vitamínicos e fazemos diversos exames.

É comum entre a 18º e a 20º semana a realização do ultrassom morfológico, um dos mais importantes principalmente por detectar possíveis problemas com o feto.

Então tudo isso gerou uma ansiedade muito grande em mim e tive de fazer tudo às pressas. O medo era constante e não, eu não queria que desse alteração alguma – e ninguém quer!

A questão é que eu já não tinha condições de ter um filho naquele momento, ainda mais um filho com alguma necessidade especial. Beatriz nasceu em Outubro de 2009, um bebê saudável pesando 4 kg. 

Em 2012 foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que não seria mais crime o aborto de fetos anencéfalos. Hoje apenas em três situações o aborto é permitido no Brasil (sem punição para a mulher e sem punição para o profissional que realizar): em caso de estupro, claro risco à vida da mulher, e de fetos anencéfalos.

Toda mulher grávida em algum desses casos é obrigada a abortar? Não. Mas existe essa opção caso ela deseje e isso tem de ser respeitado.

A questão do aborto no Brasil já vem sendo discutida há muitos anos, mais do que a discussão, desde sempre as pessoas abortam e isso é um fato. A criminalização do aborto não diminui a quantidade de abortos realizados, apenas criminaliza a mulher – e o profissional – que o executa, dificultando assim o acesso principalmente de mulheres pobres.

Um dos maiores empecilhos para a legalização do aborto em qualquer situação é o fato de vivemos em um país que apesar de dizer que é um Estado Laico, ainda sofre grande influência religiosa (vide o fato de termos bancada religiosa – claro, apenas quem acredita no cristianismo) e mais do que a questão de quem faz nossas leis, mas também os dogmas cristãos nos quais somos criados.

Também sofremos grandes influências na maternidade por essa questão do cristianismo. 

A visão da mulher mãe dentro da nossa sociedade é estereotipada baseando-se em questões do machismo e da religiosidade. A mãe de Jesus, a virgem Maria. Mãe é aquele ser imaculado, a santa, a que sofre, a que se doa, a que abre mão de si para o filho. Todas essas questões são baseadas no cristianismo.

É comum também o fato de ligarmos a maternidade ao sofrimento: sofrer ao parir (não, não precisa ser assim), o eterno padecer no paraíso. Mas será que seria vantajoso socialmente falando – para o machismo e o capitalismo – se vendessem a nós essa imagem de apenas sofrimento? Claro que não! Então acrescente a romantização desse sofrimento. “Mãe é mãe”“A gente sofre, mas aquele sorrisinho compensa”“Somos guerreiras”.

Mas o que tudo isso tem em relação com o aborto e a microcefalia?

Estamos passando por um surto de microcefalia causado pelo vírus Zika. A microcefalia é uma condição neurológica rara, a cabeça e o cérebro da criança não se desenvolvem (crescem) como o esperado, causando assim problemas de desenvolvimento, não há cura, apenas tratamento para melhorar o desenvolvimento e a qualidade de vida. A questão é que a microcefalia decorrente do vírus Zika é muito mais agressiva do que a causada por problemas genéticos.

Com esse surto surgiu o debate em relação ao aborto nesses casos. E a mídia – manipuladora como sempre – começou a divulgar diversos casos de “sucesso” e “superação” de pessoas que nasceram com microcefalia e conseguiram se desenvolver, tendo assim, uma vida praticamente normal como qualquer outra pessoa. Ignorando claro, o fator principal, o fato de que apesar de ser o mesmo problema, um é causado por um vírus e outra por fatores genéticos, sendo assim uma diferente da outra.

Quem quer um filho deficiente?

Não estamos falando de amor, porque o amor como uma construção social, pode ser construído ou não, independente da criança ter necessidades especiais. Estamos falando de querer, de escolha, a escolha de passar por um sofrimento. Quem escolhe sofrer?

Podemos romantizar a situação – e é o que geralmente fazemos -, dizendo que mães de crianças com necessidades especiais, são abençoadas, são escolhidas. Mas não é cruel romantizar o sofrimento do outro?

O que é preciso para uma criança com microcefalia se desenvolva e tenha uma qualidade de vida melhor?

Fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional são apenas alguns dos profissionais que precisarão cuidar do seu filho. Mas, quem pode pagar por todos esses profissionais? Para além da questão financeira, e voltando no fator de que a mãe tem que aguentar tudo, quem tem emocional para aguentar?

Eu sou a favor do aborto de forma livre para todas as mulheres, independente dos motivos que levaram a isso. Quem acredita que a legalização do aborto possa a vir aumentar os casos está completamente enganado, estudos mostram que o número de aborto diminuiu em países onde o aborto já é legalizado. Assim como existe uma melhor forma de controle dos porquês das mulheres que abortam, e assim saber onde está a falha, quando há uma.

O aborto é uma questão de saúde pública – mulheres já abortam, mulheres morrem abortando –, é uma questão social, mas também é uma questão individual baseada no querer da mulher. É no corpo da mulher que será gerada essa vida, e sabemos que dentro da nossa sociedade a responsabilidade e o fardo (sim, para muitas é um fardo) da maternidade caem sobre o colo da mulher. Então, só cabe a ela a decisão.

A mulher que dá continuidade a gravidez – por opção ou não – e por ventura vem a abandonar esse filho será julgada pela sociedade, julgada como péssima mãe, como monstro. A mesma sociedade que não permite e não tolera quem aborta.

Porém tolera o homem que abandona a esposa grávida, tolera e justifica o abandono paterno. A mãe, a mãe não pode! A mãe é guerreira! Mãe tem que aguentar tudo!

Somente a mulher gestante sabe se terá estrutura financeira, emocional e psicológica para ter aquele filho, sendo ele um bebê com necessidades especiais ou não. Mas não podemos ignorar – ou romantizar – o fato de que uma criança com necessidades especiais pode ser sim um fardo para essa mulher, principalmente se ela vive em situação de vulnerabilidade social.

Não quero dizer que todas as mulheres que estejam grávidas de um bebê com necessidades especiais tem que abortar – não, a ideia não é eugenia – mas sim que ela precisa ter essa opção não criminalizada, porque é um fato a se colocar na balança sim.

Precisamos rever nossos conceitos em relação à maternidade, em relação à imagem que criamos do que é ser mãe. Ser mãe não deveria ser sofrimento ou punição. Assim como nenhuma mãe deveria ser considerada guerreira por estar em uma situação de sofrimento ou de exploração.

Claro que eu admiro a batalha de quem tem um filho com necessidades especiais, mas ai que está o ponto: não deveria ser uma batalha.

Quando ouço ou leio alguém dizendo que “fulana foi escolhida por deus para ser mãe dessa criança” (se referindo a uma mãe que tem um filho com necessidades especiais), a primeira coisa que penso como ateia é: que deus é esse que escolhe uma mulher pobre, da periferia, que não consegue nem colocar o arroz e o feijão na mesa, para sofrer com uma criança (e a criança também sofre) com necessidades especiais? Como é feita essa escolha?
A outra coisa que penso é que é muito cruel romantizarmos essas situações, e que se romantizamos, é porque muitas vezes não passamos na pele por situações como essas.

É de completo egoísmo e individualismo ser contra o aborto, seja na situação que for, seja porque você usa da sua vida como régua para sociedade (“porque eu tive um filho morando embaixo da ponte, mas escolhi ter”), seja porque você acha errado ou pecado. Não sabemos como é a vida do outro, o contexto que o outro está inserido. 

É egoísmo quando somos contra o aborto e decidimos que podemos ser contra todas as mulheres.

Você pode ser contra o aborto e não abortar. É simples. Não existirá uma lei obrigando as mulheres a abortarem – seja no contexto que for - existirão opções seguras para quem deseja seguir por esse caminho. Mas é egoísmo da sua parte ser contra a legalização do aborto, preferir ver mulheres morrendo – e consequentemente o feto também – em situações de abortos clandestinos do que dar dignidade para essas mulheres.

Quando publiquei sobre isso no facebook, uma moça me perguntou:

“Mas, Isabela, e se sua mãe tivesse te abortado?”

Eu não tive oportunidade de conversar com a minha mãe na vida adulta sobre isso, mas pelo que me lembro e me contam, minha família tinha uma situação confortável na época e apesar de eu ter sido um “acidente de percurso” minha mãe já desejava ter outros filhos. Mas não é somente de questão financeira – apesar de fazer uma enorme diferença e influenciar nos outros fatores – que consiste a decisão de “um bom momento para ter um filho”, mas sim de situações como emocionais e psicológicas, e dessas eu não posso dizer.

Mas acredito que se coubesse a mim essa decisão – o que não cabe, nem em um universo paralelo, principalmente porque, né, como opinar sobre se eu não tivesse nascido? – entre ver minha mãe sofrer por levar uma gestação adiante para eu ter o “privilégio da vida” – o que é muito relativo – ou não ter nascido, eu preferia não ter nascido. E como respondi para quem me questionou, é realmente doente a gente pensar que preferia nascer e ver nossa mãe sofrer, do que cogitar a possibilidade dela ter pensado em nos abortar. Novamente, romantizam o sofrimento para acharmos que nessa situação hipotética, estaria okay ver nossa mãe sofrer, afinal, mãe é pra isso mesmo, não é? Não, não é.

A romantização da maternidade nos leva a não questionar nossa vivência na maternidade, vivência que pode ser sim um fardo – e novamente, isso não tem relação com amor - vivência que pode, e na grande maioria das vezes é , ser constituída de exploração. Talvez romantizamos para podermos suportar o que muitas vezes não seria suportável. A privação de sono, o abandono da nossa identidade como indivíduo, a nossa exclusão dos espaços sociais e políticos.

E quando falamos que precisamos parar de romantizar a maternidade, não queremos dizer que a maternidade é de um todo horrível – e sim, sua vivência pode ser ótima - mas que precisamos ser realistas e ver que a maternidade não é isso que pintam, esse mar de rosas, esse mundo colorido e feliz.

E, principalmente, é preciso parar de romantizar a maternidade para que tenhamos consciência de que essa pode ser vivida de diversas maneiras, e, sobretudo, que a mulher tem o direito de escolher se quer passar por isso ou não. Porque em alguns momentos padecemos e em outros estamos no paraíso.


Texto originalmente publicado no Blog Para Beatriz.


Isabela Kanupp é escritora, mãe da Beatriz, feminista e autora do blog Para Beatriz sobre maternidade feminista

Isabela Kanupp

Escritora, mãe da Beatriz, feminista e autora do blog Para Beatriz sobre maternidade feminista.