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Tirem a Igreja da conversa sobre aborto!

A gente já sabe que, na prática, o Brasil nunca foi laico. Por aqui, as igrejas e lideranças religiosas sempre tiveram muitíssima influência política e interferiram em diversas pautas, principalmente das mulheres e dos grupos LGBT. Mas com a recente guinada da nossa política alguns direitos ficaram ainda mais ameaçados, como o aborto.

Ricardo Barros, o novo Ministro da Saúde, declarou explicitamente que pretende chamar as igrejas para o debate sobre aborto, sem no entanto dizer qual sua posição. Não que a gente não consiga deduzir o que pensa um estadista que chama o maior opositor de uma política pública para debater o assunto num estado teoricamente laico.

Na prática, quer dizer que nós mulheres perdemos espaço numa discussão que se trata majoritariamente do nosso corpo e da nossa capacidade de decidir sobre eles. Depois de um ministério formado apenas por homens e pela extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, temos mais um indício que o novo governo não tem a menor preocupação conosco.

De todos os atores possíveis de serem chamados para a discussão, neste caso a Igreja é o que menos importa.

Por mais importante que a religiosidade seja para a vida de muitas pessoas, ela não deve impor seus preceitos para todas as mulheres do país, especialmente porque a postura dos religiosos em relação ao aborto é de total descaso com a vida e as escolhas da mulher.

Nosso único fio de esperança reside na nomeação de Flávia Piovesan para a Secretaria de Direitos Humanos, que é lúcida sobre o assunto e declarou que quem deve ter voz são sim as mulheres. O problema é que o Ministério da Saúde tem muito mais peso do que uma Secretaria de Direitos Humanos, especialmente agora. É importante que exista essa voz dissidente, mas Flávia não deve chegar a incomodar nessa atual composição do primeiro escalão do governo.

Vale lembrar também que ainda antes do governo interino de Temer nós já enfrentávamos uma difícil batalha no Congresso, já que não faltam projetos de lei para restringir o acesso a métodos contraceptivos, ao aborto legal e outros PLs que pretendem equiparar os direitos do feto aos de uma pessoa já nascida. O movimento social conseguiu adiar a discussão e votação de alguns deles, mas podemos esperar de tudo nesse momento.

E para não terminar esse texto num tom desesperançoso, gosto de lembrar de uma frase de Michel Foucault:

“Onde há poder, há resistência”

É o nosso papel por excelência e que se mostra cada dia mais necessário. Por um mundo em que Igreja nenhuma ou governo nenhum nos diga o que podemos ou não fazer com os nossos corpos. 


Nana Soares é jornalista que vai escrever sobre desigualdades de gênero até elas deixarem de existir. Co-autora da campanha contra o abuso sexual do Metrô de São Paulo, escreve sobre feminismo e violência contra a mulher para o Estadão e faz parte do Pop Don’t Preach, um podcast sobre feminismo e cultura pop.