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Não adianta mudar de marca, precisamos mudar nossa lógica de consumo

Depois de escrever o texto Pare de agir aleatoriamente, no Cinese, com listas de ações e boicotes (minha e de amigas) que ou estimulam as coisas nas quais acreditamos ou inibam aquelas com as quais não concordamos, recebi vários pedidos de listas de marcas bacanas, de comércio justo, pra ajudar no processo de compra.

Esse texto aqui é pra isso. Mas antes, é pra te contar porque você não precisa de uma lista de marcas bacanas.

(Acredite, você não precisa).

1. O boicote não é só deixar de comprar: é o começo de um processo dolorido de ressignificação das nossas relações de consumo

Muita gente leu nossas listas de boicote e de cara relatou uma sensação de paralisia:

"Ih, tá difícil. Se não devo comprar dessas marcas todas, de quem devo comprar?"

Antes de tudo, precisamos entender que não basta substituir um monte de “nãos” (pras marcas que boicotamos) por um monte de “sims” (pras marcas bacanas e confiáveis). Isso, de novo, seria operar na mesma lógica binária e habitual de consumo: comprar ou não / aqui ou ali.

Então, muita calma nessa hora.

A sensação de congelamento frente ao vislumbre de uma montanha de dificuldades práticas na hora de ir às compras é normal e bem-vinda. Mas antes de fazer qualquer coisa, é bastante importante abraçarmos de verdade essa noção de que nossos atos (e nosso dinheiro) alimentam diretamente as coisas. Parece simples dizer, mas no dia a dia essa ideia ganha várias cores e muita profundidade.

Andar por aí com essa clareza, deixar decantar e ir entendendo, devagar, o poder disso, é o primeiro passo.

Em seguida, nesse processo, cai uma baita ficha. De repente sentimos que andamos muito tempo agindo aleatoriamente e financiando coisas escrotas, e ficamos sem saber ao certo como seguir. Essa é a hora do luto.

Com o luto (que pode durar um tempo, e é bom que dure), vem uma fase importante de repensar necessidades (o que eu preciso mesmo ter? o que tenho e posso abrir mão? como utilizar melhor meus pertences, ativos e recursos?) e de diminuir consideravelmente os movimentos de compra.

Só então, por último e pra fechar o ciclo, vem a lista dos “sims”: onde comprar o que realmente preciso? que marcas, artesãos, produtores podem me fornecer o que quero dentro dessa nova ética de consumo?

2. Consumo sustentável: cuidado com a cilada

Nessa hora, de repensar hábitos de compra ativa, é preciso tomar cuidado com uma velha cilada: a do consumo sustentável.

O consumo sustentável ainda funciona em uma lógica conservadora e binária de que a única mudança que podemos operar é no papel de consumidores, através da compra ou da não compra. Além de estreita, essa percepção traz junto uma mala cheia de carga e culpa: agora, o peso está todo nas costas de um consumidor consciente.

Deixar de comprar é um ato político, sim. É importante depositarmos nossa grana a favor do que acreditamos, também. Mas é importantíssimo entender que precisamos, no caminho, mudar a nossa lógica de consumo e nos reconectarmos com o processo de produção.

Quando a questão complexa do consumo é colocada assim, sob responsabilidade do indivíduo como consumidor apenas, em termos do seu auto-sacrifício, enfrentamos um falso trade-off entre satisfação pessoal através da compra e um bem-estar social mais amplo. E, sendo humanos, é quase impossível escolher sistematicamente a segunda opção.

Além disso, o consumo sustentável também deixa de lado o processo, sua justiça distributiva e os impactos causados no percurso. Ou seja, acaba nos transformando em meros reféns da gôndola.

Não é por aí.

Não precisa se chibatar, se punir, se sentir culpado ao comprar, nem virar o louco dos rótulos. O consumo sustentável não é a única resposta. Ao meu ver, existe um outro caminho, onde a conta realmente fecha.

3. Então, qual é o caminho?

Só mudamos mesmo essa lógica antiga de consumo quando imprimimos um novo olhar pras coisas, mais circular e amplo: saímos da posição única de consumidores e passamos a enxergar o ciclo completo de produção, otimizando recursos (nossos e do mundo).

Dentro dessa perspectiva, tudo bem ler um rótulo pra saber se aquele produto que te interessa foi testado em animais ou não.

Mas melhor ainda é deixar de ir a shoppings (lojas aleatórias) e comprar direto quem faz (quem produziu ou tem consciência da cadeia que fomenta). Diminuir as idas aos supermercados e comprar de produtores orgânicos. Ir a feiras de trocas. Comprar usados. Consertar ao invés de jogar fora. Passar a fazer parte de movimentos colaborativos em geral, como, por exemplo, plataformas e comunidades que te permitem alugar o apê de alguém que vai viajar no fim de semana ou oferecer para aluguel seu carro em um período que ele estaria parado na sua garagem.

A nova lógica truca o “ter” o tempo todo ao invés de ser refém dele.

4. Calma, eu te ajudo

Pra dar uma clareada nas ideias e a pedidos, preparei uma lista, claro.

Tentei dar pra lista essa visão mais ampla, esse novo olhar, e por isso dividi em ações colaborativas (plataformas de compartilhamento e mercado redistributivo), projetos e movimentos (que te ajudem a se aproximar dos processos de produção) e marcas amigas (aqui falamos de algumas marcas que curtimos, por diversos motivos).

A lista está aqui, ó. Se você tiver dicas de plataformas, movimentos, projetos e marcas que acha que devem fazer parte da lista, deixa sua contribuição aqui nos comentários. ;)


Texto publicado originalmente no Cinese


Anna Haddad é co-fundadora da Comum. Escreve pra vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado pra mulheres.