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4 coisas que precisamos saber pra educar crianças menos machistas e LGBTfóbicas

Passei um tempo com minha mãe, em um spa no sul. Assim que cheguei, sentamos pra almoçar junto de um casal de mais ou menos 40 anos. Minha mãe delicadamente perguntou pra moça:

Márcia, como é ser mãe de um casal? 
Ah, gosto mais de ser mãe de menina sabe?  É bem difícil ser mãe de menino às vezes. Não pode dar carinho demais, amor demais, se não depois vira homossexual. 

Na hora, congelei.

Fiquei o dia pensando sobre isso e sobre como, em 2016, ainda não temos clareza sobre questões básicas ligadas à ordem de gênero e orientação sexual.

Seguimos , mesmo em meio a uma revolução digital que distribui conhecimento pra todo canto, patologizando a homossexualidade, a transexualidade e criando meninos e meninas conforme papéis estereotipados de gênero, que só causam sofrimento na vida adulta e contribuem pra aumentar a desigualdade que vivemos hoje.

Então, aí vão algumas coisas básicas que precisamos aprender, decantar, estudar e reproduzir se quisermos criar meninos e meninas menos machistas e LGBTfóbicos que a nossa própria geração. 

1. Não existe coisa de menino e coisa de menina

Aprendemos, desde cedo, que existe coisa de menino e outras de menina. Isso fica bem claro desde o nascimento, com a cor das roupinhas. Depois, nos esportes e nas brincadeiras infantis. Ballet é coisa de menina, enquanto futebol é coisa de menino. Brincar de boneca e casinha (brincadeiras conectadas a atos de carinho e cuidado) é coisa de menina, enquanto brincar de carrinho e de luta (brincadeiras que envolvem a ideia de virilidade, força e violência) é coisa de menino.

Pensando bem  ( e sem qualquer teorização sobre sexo e gênero ), essa categorização não faz nenhum sentido lógico. Primeiro de tudo, somos seres complexos, e nossos interesses não são definidos pelo fato de nascermos meninos ou meninas. Depois que, na vida real, temos que desempenhar várias funções: uma mulher também tem que dirigir e trabalhar fora, homens também tem que cuidar dos filhos e cozinhar. Então por que é estranho ver uma menina com interesse em caminhões ou um menino brincando de fazer comida?

Fazer com que meninos exercitem algumas atividades específicas e meninas outras impede que as crianças desenvolvam habilidades múltiplas, úteis pra uma vida adulta de mais igualdade. Reprime. Também, estimula uma segregação de papéis entre homens e mulheres (papéis de gênero).

Não é só típico das gerações dos nossos avós: ainda vemos muitos homens com dificuldades em exercer paternidade, demonstrar carinho e afeto, lidar com tarefas que envolvam cuidado e sem qualquer habilidade pro trabalho doméstico. E não é porque eles não nasceram pra isso. É simplesmente porque eles nunca aprenderam ou foram incentivados a exercer essas habilidades. Pelo contrário: menino que é menino não brinca com panelinhas.

Ouvimos isso das mesmas mães e pais que reclamam que os maridos não ajudam em casa, homens que acham que sua função na família se resume ao trabalho e ao sustento.

2. Não é porque um menino brinca de boneca que ele vai ser homossexual

Primeiro de tudo: ser homossexual ou transexual não é doença. Nem vou me ater a esse ponto, porque, na minha percepção, não existe mais espaço pra essa discussão (e ela vai, geralmente, pra um campo subjetivo e religioso).

Mas existe esse mito por aí de que orientação sexual se induz. Daí, o menino não pode chegar perto de uma boneca que tem sempre um por perto pra gritar: cuidado, que esse menino vai virar gay!

Muita gente insiste em acreditar que se as crianças praticarem atividades entendidas como incompatíveis com sua categoria de gênero, terão a orientação sexual afetada. Isso não é verdade. Não é porque uma menininha gosta de lutar judô que ela vai querer se relacionar com outras meninas, e não é porque um menino dança ballet que ele vai querer se relacionar com outros meninos. Pode ser que sim, pode ser que não.

Ao fazermos essa confusão , ou deixar que pessoas próximas sigam sem nenhum esclarecimento sobre o assunto ,  estamos reproduzindo estereótipos de gênero, perpetuando desigualdade, LGBTfobia e sufocando os interesses verdadeiros das crianças. 

Não daremos carinho aos meninos por medo que eles se tornem homossexuais e correremos um grande risco de criar homens cheios de questões pessoais, travas, machistas, duros, rígidos, grosseiros, com dificuldades de expressar sentimentos, violentos ou abusivos. Esses homens vão sofrer, ter relações de desigualdade com as companheiras, filhas e mulheres ao redor, e passarão pra frente as mesmas prisões de gênero pros próprios filhos.

Assim o ciclo de repressão e sofrimento segue.

3. Nem todo homem é forte e nem toda menina é delicada

No fim, toda a confusão acontece por causa dos padrões de gênero que povoam as nossas mentes.

A noção dominante de masculinidade está ligada à força, violência, brutalidade, virilidade, poder, entre outras coisas. De outro lado, a de feminilidade tem a ver com gentileza, cuidado, delicadeza e amor. Meninos e meninas que desafiam essas noções e expressam características incompatíveis com sua categoria de gênero sofrem em casa, na escola e muitas vezes são alvo de violência.

Também é comum associarmos essas características à orientação sexual. Se um menino é delicado, introspectivo e com inclinações artísticas — muito provavelmente vai ser chamado de “bicha”, “viado” e sofrer bullying, independentemente de ser ou não homossexual.

Nossa, ele é gay? Não parece! Ele é forte, alto, fala grosso e é decidido.

Quantas vezes não ouvimos isso ou falamos coisas do tipo? Bingo, padrão de gênero de novo.

Nem todo homem cabe na caixinha apertada do que se entende por masculino. O mesmo é válido pras mulheres. E isso não tem nada a ver com orientação sexual. Sobre isso, um trecho do livro Gênero, uma perspectiva global, de Raewyn Connell e Rebecca Pearse:

“Ideias sobre comportamentos adequados a cada gênero circulam constantemente, não apenas pelas mãos de legisladores, mas também nas atitudes de padres, pais, mães, professores, publicitários, donos de ponta de estoque, apresentadores de talk-shows e DJs. Eventos como a cerimônia do Oscar e o Super Bowl não são apenas consequências de nossas ideias sobre diferenças de gênero. Efetivamente, ajudam a criar essas diferenças ao exporem masculinades e feminilidades exemplares.”

4. Sexo, gênero e orientação sexual não são a mesma coisa

Em pleno século 21 e ainda confundimos sexo, gênero e orientação sexual. A Carol Patrocínio explicou os conceitos de forma simples nesse vídeo pra Comum:

De forma resumida, o sexo é biológico. Tem a ver com o aparelho reprodutor — feminino ou masculino. É fixo, nasce com a gente. Já o gênero é uma distinção social: me entendo como homem ou como mulher, independente do meu sexo. Faz referência a como nos reconhecemos dentro dos padrões estabelecidos socialmente. Orientação sexual tem a ver com as relações, as inclinações romântico-afetivas.

Não importa quantos cientistas, sociólogos e filósofos estudem sobre isso, muita gente ainda nega que existe distinção entre o componente social e o aspecto biológico. É o famoso caso da igreja católica. Em 2012, o papa Bento XVI criticou a teoria de gênero diretamente, e em um discurso de Natal disse que “o homem possui uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade”. Ou seja: nasceu com pipi, tem que necessariamente se identificar com o padrão social entendido como masculino e se identificar como homem. E vice-versa.

Sob essa perspectiva, os homossexuais são um desvio. As pessoas transexuais são uma aberração. Homens e mulheres têm papéis definidos no mundo e foram comandados pela natureza, cada um pra sua função própria:

“Em 1988, o Papa João Paulo II estava tão preocupado com essa questão que divulgou uma encíclica intitulada “Sobre a dignidade e vocação da mulher”, lembrando a todos e que as mulheres foram criadas para a maternidade e que suas funções não deveriam se confundir com as dos homens.” — Gênero, uma perspectiva global.

É uma ótica que gera injustiça e danos irreparáveis: desigualdade e opressão.

Se queremos um mundo de mais equidade e justiça entre os gêneros, precisamos, entre outras coisas, criar nossos filhos pra isso. Precisamos parar pra pensar, e não seguir um modelo automático de educação, cheio de mitos, travas e armadilhas.

Precisamos educar pra liberdade e igualdade entre os gêneros pra ontem.


Texto publicado originalmente no Medium da autora.


Anna Haddad é co-fundadora da Comum. Escreve pra vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado pra mulheres.