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#4 Não somos histéricas — por que precisamos nos despir com urgência do Complexo de Cassandra

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Ouvi durante toda a infância que minha mãe era histérica. Descompassada. Que seu destempero tinha feito meu pai ir embora. Vi minha mãe carregar nas costas pela vida inteira o fardo pesado do desequilíbrio. Ainda criança, não podia entender e protegê-la; e ela, imersa em tantos estereótipos de gênero, não conseguia voltar à superfície sozinha.

Minha mãe era Cassandra.

No final da década de 80, a psicóloga Laurie Layton Schapira chamou de “Complexo de Cassandra” o resultado da patologização de reações emocionais naturais e do desmerecimento de transtornos reais de mulheres. Nas entrelinhas, o complexo fazia referência àquelas que, desmerecidas em seus sentimentos e atos simplesmente por serem mulheres, são, consequentemente, percebidas como “irracionais”, “histéricas” e são desacreditadas quanto ao que passam ou sentem.

Minha mãe era Cassandra, mas eu também sou. Você que me lê também é. Carregamos na pele o estigma de sermos naturalmente sensíveis e emotivas. Como se o sentir fosse exclusivo do feminino. Hoje, o desmerecimento do nosso viver e das nossas vivências ganhou novos contornos. O gaslighting — abuso emocional que faz com que a vítima questione seus próprios sentimentos, instintos e sanidade —, por exemplo, tem a mesma base social do Complexo. Ambos atuam pela perspectiva de que nossos relatos não merecem credibilidade pois partimos de um lugar de fala pautado pelo descontrole.

E esse “princípio social” não vem de hoje. Se olharmos com atenção para suas raízes, conseguiremos traçar uma linha histórica de opressão.

Histeria, do grego histerus, significa útero. Durante a antiguidade, a palavra foi utilizada para descrever um tipo de doença feminina. Os sintomas eram creditados à locomoção interna que o útero realizava em busca de umidade e a doença era, inclusive, utilizada para diagnosticar transtornos nervosos nas mulheres que não conseguiam engravidar. Já mais tarde, na Idade Média, a palavra passou a ser associada à bruxaria e foi a sentença que levou muitas de nós às fogueiras.

Surtos de pânico, ansiedade, irritabilidade, insônia, dores de cabeça, perda de apetite: estes eram sintomas amplamente associados à histeria e, por consequência, acabaram indissociáveis da natureza feminina. Aí abriu-se uma fenda gigantesca para que todo comportamento que desviasse do “padrão” fosse lançado no poço sem fundo das histéricas.

Pegamos, por exemplo, as mulheres que no no período pós Revolução Industrial contestavam papeis de gênero. Taxadas como perturbadas, eram encaminhadas a hospitais e consultórios para que recebessem tratamento. Na base disso tudo está a tendência de ver em mulheres uma irracionalidade emocional que deve ser desconsiderada, e nos homens a racionalidade que torna crível suas experiências. Resta às mulheres o sofrimento naturalizado, o descaso de seus vividos e uma posição social que remete à fragilidade e instabilidade.

À época, a histeria coletiva dessas mulheres também foi relacionada à repressão sexual pela qual passavam. Curiosos, Jean Martin Charcot e seu aluno, Sigmund Freud, começaram a estudar o fato. Do encontro de Freud com a doença nascia o que, mais tarde, viria a ser conhecido como Psicanálise.

Foram aproximadamente 25 séculos nos quais a “histeria feminina” foi considerada uma condição médica. Como a suposta razão era biológica, baseada no aparelho reprodutivo das mulheres cis, o tratamento prescrito partia da manipulação desses órgãos – o vibrador foi, inclusive, popularizado como mecanismo para estimular mulheres “histéricas” para tratamento.

“Bruxas foram queimadas para extirpar o mal e muito dinheiro foi gasto para tratar a tal doença que assolava as mulheres. Mas os séculos passaram e histeria primeiro perdeu o posto de doença feminina, depois, perdeu de vez o status de distúrbio. Ficou tudo bem? Médio. Até hoje carregamos a cicatriz de um problema que nunca existiu. Como se na inexistência da patologia tivéssemos nos tornado todas histéricas.”
Maria Clara Villas, cocriadora da Hysteria, um núcleo de produção de conteúdo que constrói novas narrativas e se ocupa de novos espaços

Hoje é sabido que a histeria é uma forma de neurose, que se manifesta fisicamente e que afeta tanto homens quanto mulheres. Mesmo assim, a histeria ainda age sobre o imaginário do corpo feminino. Fica para as mulheres o rótulo de histérica e um diagnóstico antiquado transformado em naturalidade social. Ainda somos taxadas depreciativamente e nossas emoções continuam sendo relevadas. Há aí um agravante: as viradas de humor femininas, ocasionadas pelos ciclos hormonais do nosso corpo, também servem de base para nos desconsiderarem. Afinal, quem nunca ouviu um “deixa pra lá que ela está de TPM”? Pensamos, sentimos e agimos sempre de um lugar de disparate. Nessa inconstância de humor, dizem, nossa opinião não pode ser validada.

Somos exageradas, neuróticas, dramáticas, volúveis e irracionais. Somos?

Se olharmos para o gênero masculino, veremos emoções tradicionalmente associadas a homens — como raiva, agressividade e imposição física — serem consideradas razoáveis enquanto emoções tradicionalmente vistas como femininas — gritar, chorar e expressar medo ou tristeza — serem inaceitáveis. Homens têm um passe livre para reagir emocionalmente enquanto nós temos nossas emoções tomadas como exagero.

Acontece que, partindo do básico, não há gênero para as emoções. Somos seres emocionais e nossas reações são fruto de um conjunto de fatores — pensamento, circunstância, bagagem emocional. Quando nos taxam assim, querem tirar da mulher o campo da razão e colocar nossas ideias no campo passional. O termo resiste porque serve para nos desqualificar. Com isso em mente, quero propor um exercício de recondicionamento do olhar.

Nossa sugestão de prática:

Quanto tiver um tempinho livre — pode ser até entre um compromisso e outro — sente-se um pouco, respire algumas vezes e tente levar seu pensamento para situações em que você percebeu que suas emoções afloraram em ansiedade, pânico, irritabilidade. Deixe que as lembranças corram soltas. Não lute contra elas.

Depois de alguns momentos, permita que elas sigam seu curso natural e leve sua atenção para as emoções que essas lembranças te despertaram. Pergunte-se: sinto vergonha por ter me comportado assim? Julgo quando minhas atitudes, baseadas nessas emoções, saem do que é considerado padrão? Considero que fui histérica? Já me rotulei assim ou ouvi de outras pessoas que minhas ações fogem da normalidade? Sou severamente crítica com minhas emoções? Controladora?

Agora, tente descolar tais atitudes da histeria. Pense com carinho que esses momentos são apenas emoções que, afloradas, tomam contornos mais exacerbados. A ideia, nessa prática, não é que nos tornemos complacentes com rompantes, mas que sejamos mais autocompassivas. Quando novas situações trouxerem esses sentimentos manifestados, que lembremos dessa prática e que, assim,  possamos, um passinho por vez, aprender a cultivar nosso eixo.


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira.