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#1 Ninguém nos ensinou a perder

Olhar de Beatriz Xavier, artista convidada para nossa jornada sobre finitude

Olhar de Beatriz Xavier, artista convidada para nossa jornada sobre finitude

Uma amiga não supera o fim do relacionamento com a ex-companheira. Alguém no Instagram reclama da demissão que veio sem aviso prévio. Meu pai, até hoje, não gosta de falar da morte da minha avó, 11 anos depois. A prima reclama do projeto que morreu sem nem sair do papel. Minha mãe não quer envelhecer.

Seguramos forte quase tudo ao nosso redor. Pessoas, situações, cargos, nomenclaturas, o tempo. Fomos ensinados assim: somos as vitórias acumuladas durante toda uma vida, os troféus que a gente guarda na estante, as histórias com finais felizes que somos capazes de contar. Seguimos uma cartilha passada de geração em geração e basta uma busca rápida no Google para perceber que vencer — seja o que for — é a métrica normativa de felicidade:

 

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Somos educados para o ganho. Mas quando e como, afinal, seremos sensibilizados para a perda?

 

Essas pequenas mortes — muitas vezes lidas como fracassos e que nos acometem durante toda a vida — são, com frequência, mais dramáticas que a morte derradeira porque, depois delas, ainda estamos conscientes, ainda estamos lúcidos para avaliar o que perdemos. E aí, quando algo (e não raro tudo) se desfaz, somos pegos desprevenidos, nos sentimos injustiçados. Mas será, mesmo, que não fomos avisados?

 

“Boa noite. Olá. Eu tenho câncer. E com vocês, tudo bem? Todo mundo está se divertindo? Diagnosticada com câncer...”

 

Por mais perturbadora que essa introdução possa parecer, foi assim que Tig Notaro começou o seu famoso espetáculo de stand-up comedy, em Los Angeles. Era 2012 e a notícia nem de longe era uma piada. Naquele momento, recém-diagnosticada, Tig estava encarando seu câncer de mama com franqueza e um humor sutil e doloroso.  

O que começou sendo um ano promissor, mostrou-se decisivo para a vida da comediante. A carreira ia bem, viajava o país inteiro, tinha um espetáculo regular no Largo Theater e estava com planos de engravidar. Mas, depois de uma pneumonia, sentiu-se mal e colapsou. Descobriram, então, uma infecção no intestino grosso, causada pela bactéria Clostridium difficile e que a colocou em risco de morte. Com a dificuldade de comer, emagreceu nove quilos. Enfraqueceu. Uma semana depois, 24 de março, completou 41 anos. Sua mãe a chamou ao telefone no intuito de parabenizá-la, mas Tig deixou a ligação passar. Dois dias depois, o telefone toca novamente. Tig acha que é a mãe, ainda querendo estender as felicitações, mas a notícia que receberia era devastadora: do outro lado da linha, seu padrasto avisava que a mãe tinha caído, batido a cabeça e fora encontrada inconsciente. Estava no hospital — sem chances de sobreviver. Após poucos dias, sua mãe viria a falecer.

O diagnóstico de câncer veio dois meses depois: dois nódulos, câncer de mama bilateral. No dia seguinte, estava marcado a fatídica apresentação no Largo Theater. Decidiu mantê-la. Havia, ali, um certo senso de ridículo, uma comicidade que poderia ser explorada e que poderia funcionar — para ela e para seu público — como um jeito mais leve de lidar com a situação.

 

Cena do documentário Tig – Finding Life in the Face of Death

Cena do documentário Tig – Finding Life in the Face of Death

 

Após a dupla mastectomia, retirada total das mamas, as perdas não deram trégua. Tig, em sua luta para ter filhos, descobriu que a estimulação hormonal necessária para inseminação artificial poderia desenvolver câncer em outro lugar do corpo — e que, caso ocorresse, seria intratável. Nesse ínterim, conheceu Sthephanie Allynne, por quem se apaixonou. Sthephanie, no entanto, não se reconhecia como lésbica ou bissexual e, confusa com uma primeira experiência homoafetiva, decidiu romper com Tig.

 

“É muito doloroso sentir o chão e não ter onde se agarrar (...) É nesse ponto que surge a ternura. Quando tudo balança e nada funciona, é possível perceber que estamos à beira de algo. Esse é um lugar muito vulnerável e delicado, e essa delicadeza nos apresenta duas possibilidades. Podemos nos fechar e sentir ressentidos, ou tocar essa essência vibrante. Há, com certeza, uma qualidade delicada e vibrante quando experimentamos não ter nenhuma base”
Pema Chödrön, no livro Quando tudo se desfaz — orientação para tempos difíceis

 

A verdade é que, independente do nosso preparo, vivemos com esse engano fundamental de que podemos nos proteger das perdas — e do medo. Queremos nos embalar em plástico bolha na intenção de fazer com que as quedas não nos atinjam. Mas acontece que as coisas não são externas e que, uma vez aqui dentro, precisamos lidar com elas queiramos ou não.

E como podemos, então, encontrar felicidade genuína sabendo que estamos à mercê da incerteza, do envelhecimento, da doença e morte? Como despertar a consciência da nossa própria mortalidade, em vez de esperar que um câncer surja ou que alguém ao nosso lado morra? Se notarmos que há pequenas mortes o tempo inteiro ao nosso redor e mantermos essa consciência vívida, a finitude não nos pegará desprevenidos como é de costume.

Nessa jornada que começa aqui, vamos fazer um pacto de sabedoria: manter a realidade em vista. O processo de cura ocorre quando abrimos espaço para a impermanência natural das coisas, quando permitimos que os fenômenos aconteçam como devem acontecer: algo se desfaz, se refaz em outra configuração, para, mais ali na frente, se desfazer novamente.

 

 

No turbilhão que se instaurou na vida de Tig, uma boa notícia: não havia metástase. Pela primeira vez em meses respirava aliviada. Com o tempo, a vida foi entrando nos eixos. Após o término, Stephanie percebeu que, independente dos rótulos, amava Tig e a queria de volta. Reataram, então, e em 2014 ficaram noivas. Em 2016 realizaram o sonho de ser mães — de gêmeos.

 

Aqui, temos um desfecho considerado feliz. Mas e se não fosse?

 

Quando algo se desintegra, achamos que o processo é um teste: estamos sendo colocados à prova, mas, se superarmos os obstáculos, seremos agraciados ao final. Porém, se olharmos bem para nossa trajetória e para a dos outros ao nosso redor, veremos que a vida nunca se resolve. Que as coisas irão se dissolver o tempo todo. Nossa experiência terrena inteira é feita de mortes simbólicas. Quando estamos frente a frente com o desespero, com o incômodo e a confusão, estamos diantes de uma espécie de morte. Lidar com elas pode ser mais difícil do que lidar com as mortes físicas, aliás. Com a morte real, não há discussão. Com a simbólica, muitas vezes nos enganamos que algo ainda está vivo. Acreditamos que uma determinada configuração, por mágica, irá se reestabelecer. Estagnamos. Ficamos à espera de milagres. Em vez de encararmos como uma oportunidade de renascimentos, acionamos o botão ejetar e corremos feito loucos.

Acontece que quando temos essas pequenas mortes, o luto não respeitado e vivenciado dá resultado a uma paralisia existencial. Ficamos fechados para novas relações, outras oportunidades. Enterramos, junto com aquela parte da história que acabou, a nossa esperança em dias melhores. Aceitar a perda tem, então, um papel vital nessa nossa vida, que continua.

 

Enfrentar os processos de perda é se renovar para o próximo passo

 

“Só conseguiremos passar para a próxima etapa se tivermos uma destas três confirmações: de que perdoamos, deixamos nossa marca ou levamos a história conosco, tirando dela os aprendizados possíveis. Primeiro nos perguntamos se tem algo de que nos arrependemos, algo que contribuiu para aquela morte. Se a resposta for sim, nos sentimos responsáveis pela construção daquela morte. Então existe um arrependimento. O segundo ponto é se não seremos esquecidos. O terceiro pode ser uma experiência de imortalidade. Seguimos em frente, mas deixamos algo de nossa essência, da nossa história, naquele tempo, naquele ambiente, naquela pessoa que sai da nossa vida”
Ana Cláudia Quintana Arantes, médica geriatra e especialista em Cuidados Paliativos. Colaborou com essa jornada em uma série de entrevistas que em breve você verá por aqui

 

Saber viver os lutos cotidianos nos prepara para as mortes maiores, com as quais não há conversa, não há mediação, não tem jeito de a gente vencer. Por isso, estarmos propensas a olhar honestamente para dentro de nós mesmas é uma contribuição e tanto para nosso florescimento humano. Não é um caminho fácil, mas é um caminho possível, bonito e mais benéfico: com menos vontade de controlar as situações — e evitar os fins —, conseguimos nos entregar verdadeiramente para as situações. Conseguimos, genuinamente, viver esse intervalo entre o nascer e o morrer com profundidade e qualidade.

A grande questão aqui é perceber que já que não há segurança melhor então que aprendamos a relaxar no momento presente, a não resistir ao fato de que as coisas terminam e que saibamos como navegar de forma mais tranquila na desesperança.

Soltar os controles e deixar que os conceitos e ideias desmoronem: esse é o nosso convite para você e é o caminho que vamos trilhar. Juntas, durante o percurso, iremos nos lembrar de lembrar: voltar, com frequência, a ver a realidade, retornar a visão para dentro. É um convite para nutrirmos uma mente desperta, clara, fresca — mesmo quando tudo se desfaz e nos sentimos inseguras, feridas, desesperançosas e confusas. Vamos?
 


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira.