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#3 Direitos sexuais e reprodutivos: direitos para e por todas nós

Como funciona o meu ciclo? Eu quero ter uma vida sexual ativa? Como desejo viver essa sexualidade? Como posso sentir prazer? Quais métodos contraceptivos estão disponíveis no mercado hoje? Quais são os possíveis impactos dessas substâncias no meu organismo? Eu quero ter filhos? Quando? Como quero parir? E se eu quiser abortar?

Independente de qualquer militância ou inclinação política, essas são discussões que fazem parte da vida de todas nós. Ou, ao menos, deveriam fazer.

Ainda na época da escola, me lembro especificamente de uma aula de biologia sobre a puberdade — educação sexual não passou nem perto das minhas bandas — e do professor explicando sobre como o boom de hormônios agia nos corpos dos meninos. Ele falava de tudo: de espinhas à polução noturna, sem qualquer pressa ou constrangimento.

Mas quando chegou a hora de explicar como esse mesmo evento se manifestava em corpos biologicamente femininos, o professor se restringiu a dizer que meninas menstruavam e que o nome da primeira menstruação era menarca. Ponto final. Em casa, a conversa também não foi além e, entre meus 11 e 12 anos, eu realmente achei que essa tal de puberdade seria muito mais fácil pra mim do que para os meus colegas de turma. Afinal, não parecia que ia mudar tanta coisa na minha vida.

Porém, mudaria — e eu não tinha a menor ideia do que estava por vir. Eu não sabia nada: nem o que encontraria na minha primeira consulta ginecológica, nem o que era exatamente uma TPM. E assim muito tempo passou sem que eu soubesse relatar ou entender o que acontecia com o meu corpo. Como o veredicto era sempre “está tudo normal”, eu acreditava.

Isso foi suficiente até o momento em que finalmente parei e me perguntei o que diabos era “normal”. Se nem a minha médica conversava abertamente comigo sobre o meu próprio corpo, então como eu poderia saber o que é natural pra mim? E, na verdade, eu nunca havia nem me olhado com carinho e atenção para poder ter condições de discordar de alguma coisa.

Ilustração de Laura Berger

Ilustração de Laura Berger

Esse breve relato está em primeira pessoa, mas desde que despertei para essas questões fui percebendo o quanto ele se repetia. E foi juntando o que eu ouvia nas conversas com amigas, o que observava nas minhas pesquisas de campo e as experiências partilhadas pelas mulheres que participaram das minhas oficinas que percebi que esse é um verdadeiro rito de passagem para muitas de nós: não saber.

E não é só sobre estar à margem da informação, mas também ter de aceitar que mesmo sem respostas completas um conjunto de normas bastante arcaicas ainda paira sobre nossas cabeças e sustenta ditames bem restritos sobre como a nossa vida deve ser. Nascer, crescer, casar e ter filhos (com homens): essa é a regra.

É como se o destino dos nossos corpos fosse traçado no momento do nosso nascimento e que a nós só coubesse acatar, sem direito algum. E é por isso que conversar com meninas e mulheres sobre como elas querem viver seus corpos e suas sexualidades é tão revolucionário. Falar com elas tira de vez a questão do obscurantismo e abre caminho para trabalharmos juntas os saberes sobre isso e a nossa consciência sobre o tema.

Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (DSDR)

Os direitos sexuais e reprodutivos (DSDR) são absolutamente todos os direitos relativos ao exercício livre, pleno e esclarecido da nossa sexualidade e das nossas possibilidades reprodutivas. Ou seja, são Direitos Humanos que têm como eixo a saúde sexual e reprodutiva do indivíduo sob uma perspectiva integral, perpassando aspectos físicos, psicológicos e emocionais.

E isso abrange tudo: desde a necessidade de inclusão da educação sexual enquanto tema obrigatório nas escolas até o direito ao aborto legal seguro para todas as mulheres — passando por temas como o atendimento humanizado, o planejamento familiar, o respeito à diversidade, o direito de acesso à esterilizações cirúrgicas voluntárias, a técnicas de reprodução assistida e muitas outras coisas.

Educação: o x da questão

Ao conversar abertamente com uma garota sobre como seu corpo funciona e dizer pra ela que absolutamente todas nós temos opções (inclusive uma infinidade delas), nós estamos rompendo, juntas, esse ciclo de silêncio patrocinado pelo machismo, sexismo e misoginia.

Assim, negamos que qualquer forma de conservadorismo nos limite, pois estamos dizendo que todas nós somos cidadãs, que todas temos direitos e, mais que isso, que nossas vidas e corpos pertencem somente à nós mesmas.

E é nesse ponto que educar meninas e mulheres sobre direitos sexuais e reprodutivos, em todas as formas que isso se faz possível, se mostra uma ferramenta tão poderosa de transformação social: ter conhecimento sobre eles instantaneamente fortalece a autonomia, gera empoderamento e promove a igualdade de gênero. E isso muda vidas, uma por uma.

 

Esse foi o entendimento que serviu para que os DSDR fossem reconhecidos como Direitos Humanos ao longo das Conferências Internacionais nos anos 90. Isso significa que os países signatários dessas conferências participaram de encontros com discussões detalhadas sobre o assunto, reconheceram a importância do tema e firmaram um compromisso público perante a comunidade internacional de garantir e promover esses direitos no âmbito de seus territórios através da revisão e melhoria de suas legislações, da promoção de políticas públicas, de campanhas de conscientização, reformas curriculares, etc.

O Brasil participou desses encontros e assumiu esse compromisso, mas, desde então, pouco avançamos. A nossa legislação sofreu alterações ínfimas e as ações do governo seguem sem um alcance significativo. A realidade é que, hoje, ainda estamos brigando pelo direito a um atendimento médico acolhedor, integral e humanizado tanto na esfera pública como na particular; ainda estamos lutando para que o plano de parto das gestantes seja respeitado, para que elas não sofram violência obstétrica e para que as vítimas de violência sexual tenham real acesso ao serviço de abortamento legal.

Todas essas demandas já são garantidas por lei, mas, infelizmente, nem assim estamos amparadas. E isso significa que existe todo um sistema que não nos reconhece e não respeita nossos direitos mais básicos. Mudar isso é imperativo e o primeiro passo é entender que existe uma sociedade inteira implicada.

São políticos, professores, gestores, profissionais de saúde, chefes, colegas, familiares: todos fazem parte dessa dinâmica. Então, estratégias para virarmos o jogo cabem nas mais variadas esferas da vida cotidiana.

Mas como você pode fazer parte disso?

1 – Comece por você

Se conheça. Se apresente para você mesma, observe seu corpo, seus hábitos e questione tudo que pode lhe ter sido imposto de alguma maneira, mas não faz sentido pra você. Conheça seus direitos, fale com seus médicos e busque alternativas que lhe contemplem. Ser protagonista e autônoma em relação a sua saúde é praticar o autocuidado, mas é também conhecer o sistema, saber navegá-lo e nele encontrar aliados.

Um exemplo disso é o trabalho do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que além de acreditar e promover um atendimento ginecológico acolhedor e humanizado, incentiva o autoconhecimento, oferece aconselhamento jurídico e promove eventos ao longo de todo ano tratando sobre temáticas pertinentes aos direitos sexuais e reprodutivos.

2- Fortaleça sua rede

Você não está sozinha! Procure outras mulheres e fale sobre isso. Encontre redes de mulheres nas quais você se sinta confortável e segura, busque sobre os temas que te tocam, fale sobre o que você já descobriu. O processo se fortalece muito quando também é uma construção coletiva.

Grupos no Facebook como o “Coletores – Além da menstruação” e o “Ginecologia Natural” cresceram muito nos últimos anos exatamente como lugares para isso. Neles, as integrantes trocam desde relatos sobre assuntos sensíveis até indicações de profissionais comprometidos com questões ligadas à sexualidade e ao movimento pelo parto natural, por exemplo.


3- Ocupe e multiplique

Fale sobre isso. Fale sobre isso em casa, com a família, com os amigos, no trabalho e onde mais você puder. Fale com crianças, adolescentes e adultos. Circule informações, converse sobre direitos, fomente questionamentos e empodere outras mulheres. Se você é mãe e participa do conselho da escola da sua cria, leve essa pauta pra lá. Se você é médica, fale com as suas pacientes e se você é praticante de alguma religião, leve essa conversa para a sua igreja.

O grupo Católicas pelo Direito de Decidir é um exemplo de movimento que surgiu assim e hoje elas são uma das entidades civis mais atuantes na luta pelos DSDR, defendendo o estado laico e participando ativamente na luta pelo direito ao aborto.

4 – Vote em mulheres

Hoje, estamos diante da composição do Congresso mais conservadora desde os tempos da Ditadura e o percentual de representação feminina na política em nosso país gira em torno de 10%. Isso não é mera coincidência e a PEC 181, que propõe uma série de retrocessos no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos, é fruto desse cenário.

Então, para que possamos falar em políticas públicas completas e eficazes no sentido de promover e garantir os DSDR, precisamos de representantes dos nossos interesses em todas âmbitos do poder público. Nós precisamos de mulheres pensando, contribuindo e cobrando nas mais diversas esferas da sociedade e é através do voto que nós podemos garantir que nossas parceiras nessa jornada estejam em absolutamente todos lugares. Para e por nós.

E aí, vamos juntas?

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Para se aprofundar:

Cartilha de Direitos Sexuais e Reprodutivos

Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher

Quero Mulheres na Política

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Luiza Soler é advogada, especialista em Gênero e Sexualidade e mestranda em Saúde Coletiva. 

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