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#2 Estética x saúde: como padrões estéticos nos aprisionam e desequilibram

Tenho psoríase. Uma doença de pele crônica, não contagiosa e sem cura. Sua causa ainda é desconhecida, mas se sabe que pode estar relacionada ao sistema imunológico, às interações com o meio ambiente e à herança genética. Os gatilhos mais comuns são infecções, frio e o estresse. Todas as mulheres da minha família têm. Descobri que não fugia à regra aos 18 anos, no meio do cursinho para o vestibular, extremamente ansiosa e preocupada. No auge da minha vida social, no meio de um verão, vi meu corpo ser coberto por placas avermelhadas e descamações.

Fiz inúmeros tratamentos, aprendi a lidar com as idas e vindas da doença até que aos 25, num namoro que acabara de começar e já era abusivo, passei a ter vergonha do meu corpo quando a psoríase aparecia. No meio de uma crise, encontrei um tratamento milagroso que prometia curar para sempre uma doença sem cura. Comprei pela internet, esperei os cremes chegarem, apliquei. Tive queimaduras de primeiro grau por quase toda a pele. Foi a primeira vez que experimentei tão claramente a ideia de que, para mim, em alguns momentos, a estética estava acima da saúde.

Comecei a olhar para os lados e a observar que não era um movimento solitário, muitas das minhas também dividiam essa angústia. Algumas, ainda, tamanha era a opressão, não conseguiam nem distinguir como o mito da beleza recai sobre nós de forma dolorosa e, às vezes, fatal.

Ilustração de Laura Berger

Ilustração de Laura Berger

A minha história não é, nem de longe, a mais grave. O Brasil é o segundo país que mais realiza procedimentos estéticos no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No entanto, sabe-se que milhares de procedimentos são feitos de forma clandestina e inadequada, expondo pacientes a riscos de morte. As histórias drásticas de consequências de processos cirúrgicos mal realizados são inúmeras.

Nem sempre a relação entre estética e saúde é mediada por intervenções físicas externas. Uma pesquisa realizada pela Secretaria de Estado da Saúde revelou que 77% das jovens em São Paulo apresentam propensão a desenvolverem algum tipo de distúrbio alimentar, como anorexia e bulimia. São meninas que aprenderam que só serão validadas pelas aparências. Que sofrem e internalizam pressões ao ponto de reprogramarem seus corpos e metabolismos para atingi-los.

"A gente nunca consegue parar de olhar para o corpo porque é isso: agora está demais, agora está de menos, agora tá flácido. Dos 17 aos 26 minha relação com a comida foi assim, eu comia o básico para sobreviver. E aí, no fim do dia, compulsão. Os momentos mais agudos estão sempre ligados ao momento de desconexão total, de medo, insegurança."

Depoimento de Mirian Bottan, em entrevista para a nossa trilha de Comidas & Emoções.

No alvo da moda temos, agora, as cirurgias plásticas vaginais. Segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), o Brasil é líder em cirurgias dessa natureza. A tendência, aliás, tem chamado atenção inclusive de adolescentes. Segundo registros do Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido, entre 2015 e 2016 cerca de 200 mulheres menores de 18 anos fizeram labioplastia.

Os números assustam, mas também servem para que coloquemos na balança, o questionamento: até onde vamos para alcançar um ideal de beleza que, por si só, já é inatingível? De que forma podemos equilibrar desejos e anseios estéticos, mas sem esquecer de que, em primeiro lugar, precisamos olhar para nosso corpo e seus limites?

“Acho, pelo que estudei sobre esse assunto, que todo mundo no fim quer ser aceito e amado. Homens e mulheres. Mas, diferente dos homens, as mulheres ainda são criadas para que essa questão de ser aceita esteja muito ligada à imagem, não tanto à personalidade. Enquanto do lado masculino é mais a personalidade, o status, o poder, a força — atrelado às vezes também ao físico —, do lado feminino, ser aceita está conectado com o fato de ser bonita.”

Vanessa Rozan, em entrevista para a Comum.

Não é um caminho fácil, tampouco é impossível. Se, de início, é complicado desprogramar esse nossa visão autocrítica e se começássemos por exemplo, estendendo o olhar cuidadoso para as meninas ao nosso redor, fazendo com que elas percebam que estão além de qualquer imposição ou modismo estético? Quando vemos uma menina em dilemas por conta da sua aparência ou que sofre bullying no colégio porque não se encaixa no que é considerado padrão, fica óbvio que há algo de errado com a forma com que educamos as crianças. E aí fica mais evidente que a forma como ensinam as mulheres a se enxergarem é deturpada. Entendemos que não estamos sozinhas. 

“É quase impossível a gente não olhar para as nossas filhas e não dizer “nossa como você está linda, como você está maravilhosa, como você está uma graça”. O elogio é muito mais fácil de ser colocado do que, por exemplo, o encorajamento. E esse tem sido meu exercício agora:  encorajar as meninas mais do que elogiar. Eu não acho que o elogio é um problema. O valor que o elogio tem é que faz com que as crianças cresçam sem entender que existem outras coisas que compõem a beleza delas.”

Luanda Fonseca, no texto Como educar crianças para além do padrão estético.

Podemos, em seguida, dar um passo em direção a autocompaixão. Entender que fomos ensinadas a achar que a corrida maluca em busca do corpo ideal, da juventude prolongada é o que importa, independente das consequências pelo caminho. Entendendo o contexto, podemos nos acolher, abraçar, apreciar nosso processo com um olhar mais carinhoso. Não é com dureza que conseguiremos nos desfazer desses padrões nocivos até mesmo porque, nesse percurso, não há certo ou errado.

Ilustração de Laura Berger

Ilustração de Laura Berger

A pergunta, aqui, é o que, para cada uma de nós, machuca e ultrapassa limites quando o assunto é estética.

Por fim, mas não menos importante, temos sempre a opção de extrair o máximo de informações possível daquele procedimento que optamos por fazer ou de caminhos que queiramos seguir em quando o assunto é estética. Não é sobre condenar esse ou aquele procedimento nem tentar converter as pessoas à jornada da beleza natural. É sobre autoconhecimento, autonomia, sobre a liberdade de escolha. Em vez de optarmos por esse ou aquele caminho, e se parássemos e nos perguntássemos honestamente o motivo de estarmos fazendo essa escolha? Estou sendo pressionada por padrões? Sinto que preciso dessa mudança para me sentir mais pertencida ou só estou tentando agradar a mim mesma? 

Investigue, dê espaço para o que brotar, acolha as respostas. Depois, com os porquês esclarecidos, podemos analisar com mais fluidez as opções. Mirarmos com transparência para cada escolha é um jeito consistente de construirmos uma relação íntima pautada no autocuidado, na escuta genuína das nossas demandas. Assim, vamos dando passos mais leves, mais seguros e autoconfiantes nesse movimento contínuo que é olhar para nós mesmas, nossos corpos e seus processos. 

No fórum, estamos conversando sobre esse início de jornada: de onde estamos vindo, quais as nossas semelhanças nesse percurso, para onde estamos olhando. Espero vê-la por lá para trocarmos impressões e nos acolhermos, sempre que possível. Seguimos.

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Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Na Comum, é editora-chefe, participante e caseira.