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Entre a mulher e a mãe: como a gravidez interfere na sexualidade feminina

Ilustração da querida Flávia Totoli. Pra saber mais dela, vem aqui ó.

Ilustração da querida Flávia Totoli. Pra saber mais dela, vem aqui ó.


Esse texto faz parte de uma série sobre sexualidade que vai trazer recortes de diversos tipos e nos ajudar a tirar as amarras que temos em relação ao sexo. Toda sexta-feira você encontra um novo ponto de vista aqui na Comum - coloque na agenda!


Quando o resultado do exame deu positivo o silêncio pairou em meu apartamento por mais ou menos três dias. Eu me lembro de me deitar na cama, com o meu parceiro do meu lado, e chorar durante algumas horas, enquanto ele calado me abraçava, com aquela expressão que as pessoas fazem quando estão confusas e desacreditas demais para balbuciarem alguma coisa.

Eu não conseguia dar um sentido claro e objetivo às minhas lágrimas. Talvez eu estivesse chorando porque a pílula não funcionou, ou apenas de raiva do médico que disse que meus ‘escapes’ eram apenas o meu corpo reagindo ao estresse. Ou quem sabe o choro tenha sido, simplesmente por perceber o fato de nunca ter tido de verdade o poder de evitar uma gravidez, afinal nenhum método anticoncepcional é 100% seguro.

Sendo sincera, motivos para chorar não me faltavam e por conta disso eu vivi uma tristeza profunda por dias. Desculpem se dizendo isso ofendo alguma mulher que sonha com a maternidade, mas descobrir a minha gravidez não foi uma alegria para mim, apesar de hoje lidar com a situação de forma mais saudável. Foram tantas coisas para pesar: o trabalho que eu havia acabado de conseguir, as contas ainda mal pagas, o apartamento pequeno, a crise econômica, a crise política. Simplesmente não era o momento para se ter um filho! Não era e não é!

Esses motivos pareciam muito claros na cabeça do meu namorado. Os contras eram esses: dinheiro, profissão e uma sociedade tão louca e má que parecia crueldade por uma criança no mundo. Porém na minha cabeça os problemas não paravam por ai. Além da insegurança de me tornar uma mãe, eu sentia uma parte de minha desmoronar, incrivelmente eu temi não ser mais mulher! Ou pelo menos não mais a mulher que por anos eu lutei para ser.

A minha adolescência não foi fácil, sempre fui gordinha e cresci cheia de inseguranças. Lutei anos para emagrecer e me encaixar em um padrão. Nunca consegui de fato, porque na verdade eu não nasci com um corpo adequado para ser magra.

Eu demorei a me sentir bonita e aceitar que minhas curvas, celulites e “excessos” não fossem ridículos aos olhos dos outros. Levei um longo tempo para me sentir verdadeiramente algo mais que um corpo para os meninos da minha idade, que ficavam interessados no tamanho dos meus seios, mas jamais me assumiriam publicamente por eu não estar nos padrões socialmente ditos como “ideais”. Quando eu me tornei uma mulher alguns complexos sumiram, mas todos bateram novamente a minha mente quando me vi diante da possibilidade de ver meu corpo se transformando em algo diferente do que é hoje.

A mãe x a mulher

Alguns dias após a descoberta da minha gestação eu fui com uma amiga ao shopping comprar um presente de aniversário para mãe dela. Entramos em uma loja de lingerie procurando um roupão para ser o presente e enquanto ela conversava com as vendedoras passeie pela loja interessadas em calcinhas e sutiãs e do nada chorei. Eu me senti extremamente inapropriada para aquele ambiente e, além disso, me senti ainda mais culpada por depois de anos de feminismo me sentir daquele jeito.

Logo nas primeiras semanas após o teste, fiquei obcecada em matérias de portais femininos que “ensinavam” “como manter a chama acessa depois da chegada do bebê”. Todas me confirmavam que tudo mudaria, que eu perderia a libido, só teria tempo para o bebê, que meu corpo seria outro e por isso seria obrigada a caprichar na massagem para “agradar o maridão” e manter o casamento.

Foi nesse ponto que comecei a perceber que talvez o mundo estivesse me vendendo à história errada apenas por eu ser mulher.

Afinal, assim como o meu parceiro eu não queria um filho, pois ele mudaria a minha vida completamente em um momento ainda de muita instabilidade profissional e financeira. Porém algo que nos distanciava nesse momento é que além da preocupação de “como eu vou criar uma criança e ainda ter tempo para correr atrás das minhas ambições?” eu me questionava a cada minuto “como eu conseguirei ter um filho e ainda assim me manter uma mulher interessante nesse relacionamento?”.

Mesmo meu namorado não me dando motivos para inseguranças, rapidamente todas as partes de mim começaram a gritar que a minha vida sexual estava com os dias contatos. Ele logo me veria como uma “mãe”, e talvez descartasse sem me perguntar a possibilidade de eu preservar a mesma malicia e desejo de hoje.

Esses fatores me ajudaram a entender que a verdade é muito simples: Se a sociedade não aceita a sexualidade feminina ao ponto de culpar e recriminar mulheres por uma gravidez indesejada, ao mesmo tempo que as obrigam a gerar uma nova vida, é claro que a sexualidade de uma mãe não é bem vista e tão pouco debatida socialmente, pois ela simplesmente “não importa!”. O que conta para sociedade é a mulher, por meio da atividade sexual, atingir a sua obrigação social máxima, ou seja, a maternidade.

Mães são mães e acima de tudo mães. Não há algo mais importante para elas do que o bem estar de seus pequenos. “Filhos antes da profissão; filhos antes do bem estar; filhos antes da saúde; filhos antes do prazer; filhos antes delas mesmas”. E incrivelmente é uma das únicas coisas que uma mulher dificilmente pode alcançar sozinha. Filhos não são das mães, filhos são de responsabilidade das pessoas que os geraram.

Entretanto, naquele momento, só eu estava colocando a minha autoestima e sexualidade em xeque, só eu tive medo de não ser mais atraente, excitante e bem disposta a uma vida sexual prazerosa e feliz. Mas eu não me preocupava com essas coisas apenas porque criaria uma criança, eu me preocupava por ser mulher.

Perceber que estava sendo vítima do machismo socialmente instaurado me deu forças para tentar administrar as minhas inseguranças. Li muito, ainda leio. Encontrei em meio alguns estudos na área da psicologia e saúde sexual, depoimentos comoventes de mulheres que assim como eu se sentiam culpadas por não verem a transformação corporal da gestação como algo gostoso de vivenciar.

E é tão incoerente notar o quão hipócrita nossa sociedade é. Se de um lado se exige da mãe um prazer descomunal em gerar um ser, por outro se crucifica as marcas da gestação. A barriguinha depois do casamento é “relaxo”, o seio caído é “desleixo”, a falta de tempo para manicure, cabeleireiro e esteticista é o cúmulo da “falta de vaidade”.

No artigo “Corpos e sexualidade na gravidez”, das professoras doutoras em obstetrícia Natalúcia Matos Araújo; Natália Rejane Salim; Dulce Maria Rosa Gualda; e Lucia Cristina Florentino Pereira da Silva, da faculdade de enfermagem da Universidade de São Paulo, podemos notar como as cobranças ao corpo e a vida sexual afetam as gestantes.

Para o estudo sete grávidas foram entrevistadas e o que vemos abaixo é um resumo dos relatos encontrados no artigo. Em perguntas sobre o desenvolvimento da gravidez, resposta relacionadas a “imagem física” podem ser observadas.

“Os cravos saíram todos para fora. Meu cabelo caiu todo e continua caindo. Meu cabelo tá ralo, ralo, aqui na frente... (Rosa”).
“Aqui embaixo (no queixo) ficou um pouco de espinha e os cabelos que caíram bastante, acho que vou ficar careca (Gérbera)”.
“quando acordo de manhã estou toda inchada, minha cara fica igual uma bola. Eu olho no espelho e está aquela bolona assim... Aí vai passando o dia e vai desinchando e depois vai desinchando as mãos e depois os pés (Margarida)”.
“...acho que vai ficar muito feio, todo mundo fala que fica feio depois. Ah... eu acho que... bom, todo mundo fala: depois o peito vai e cai, vai ficar caído, vai ficar feio, não fica a mesma coisa de antes e eu estou vendo a minha barriga esticar demais e depois ficar muito flácida, cheia de estrias também... só nos seios que já apareceram algumas; a minha parte depressiva da gravidez é esta (Azaleia)”.
“a única coisa que eu só tenho medo é engordar demais, que eu sou baixa e também tenho fé em Deus que não vou ficar gorda depois da minha gravidez, depois que ganhar não quero ficar com o meu corpo deformado, espero não criar estria, nem varizes, os peito rasgar... de coçar né, que tem muitas mulheres que se rasgam (Violeta)”.

O corpo é uma das ferramentas de expressão da sexualidade humana, logo, enxergar o próprio corpo como algo em “decadência” automaticamente torna a vida sexual mais limitadora para algumas mulheres.

Então eu me pergunto: É a maternidade que interfere na sexualidade feminina, ou, é a cobrança de um corpo feminino visto socialmente como “sexual” que prejudica a sexualidade de algumas mulheres após o parto?

Como podemos ajudar futuras mães a não se sentirem apenas mães?

Eu nunca havia pensando nesse assunto, mas depois de vivenciar, em um curto período, algumas dezenas de situações frustrantes, por estar grávida, eu queria deixar aqui quatro dicas para que possamos ajudar mães a não se sentirem obrigadas a abdicarem do direito de serem mulheres:

  1. Perguntem como elas se sentem, conversem com elas sobre diferentes assuntos que não tenham apenas a ver com o sexo do bebê.

  2. Não comentem de forma pejorativa sobre as mudanças físicas da gravidez. Não deem dicas cosméticas para gestantes, como se algum sinal que possa ficar de que aquele corpo já esteve grávido fosse algo negativo.

  3. Não exclua uma gestante dos assuntos corriqueiros do dia a dia que envolvem sexo, como se a partir desse momento devessem algum tipo de respeito moral a elas.

  4. E aos companheiros, respeitem as inseguranças, ajudem a reconstruir a auto confiança e as amem e as desejem como se nada fosse jamais mudar.


Sexualidade: a trilha da mês

A trilha da Comum desse mês é sobre sexualidade feminina. Vamos explorar o tema juntas, através de textos, vídeos, conversas no fórum e práticas. O percurso começou em setembro e está disponível integralmente só pras assinantes. Se quiser saber como se tornar uma pra ter acesso às trilhas, ao fórum e os encontros fechados, clica aqui e vem com a gente. 

O encontro é aberto a todas as mulheres. Saiba mais aqui.


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Nina Franco é jornalista e acredita que falar sobre mulheres vai muito além dos manuais de tendências e maquiagens. Em 2015 escreveu o Ebook "Sexualidade Feminina, uma história em construção". Hoje se dedica a pesquisa na área de antropologia, sexualidade e gênero.

Flavia Totoli é nascida e criada em sampa. Sempre com um caderno de rascunhos na bolsa. Apaixonada por imagens e contar histórias (de preferência tudo junto).