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Autonomia afetiva: como cultivar o próprio eixo dentro ou fora das relações?

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Minha cidade — carinhosamente apelidada de Ilha da Magia não só pelas belezas naturais, mas também por suas mandingas — tem uma árvore frondosa na praça central. Dizem que aqueles que rodam quinze vezes em volta do seu tronco e fazem um pedido acabam por realizar seu desejo. Aos seis anos, num passeio da escola, lembro-me de girar em volta da tal árvore e pedir fortemente para que Alexandre, colega de classe do pré-escolar, também gostasse de mim. Essa é lembrança mais tenra que tenho do amor.  

É uma recordação bonita, mas, numa olhada aprofundada, é também um sinal primário de uma movimentação que, se não desconstruída, pode perdurar por toda a vida de nós, mulheres: somos educadas para enlaces românticos. Não como uma possibilidade na vida, mas como um plano único de sucesso. Só somos validadas enquanto em relações amorosas. Se não estamos namorando ou casadas, há algo de muito errado com a nossa vida.

Dizem, desde cedo, entre panelinhas, bonecas e vassourinhas cor-de-rosa, que nosso objetivo existencial é encontrar a alma gêmea — e termos nosso afeto correspondido. Ao contrário do que ensinam para meninos, não somos incentivadas a sonhar amplamente. Salvar o mundo, ser feliz, virar astronauta, descobrir-se cientista, ser bem-sucedidx, levar uma vida tranquila e feliz, ser altruísta: esses são anseios permitidos com mais facilidade a homens.

Nós ainda estamos presas na armadilha do amor romântico.

É o amor nosso ponto fraco e é ele quem define toda a nossa existência. Na prática, esse mito tóxico é ainda mais visível quando olhamos para um outro expoente: nossa autonomia afetiva. Somos controladas pela dependência. Passamos uma vida inteira matutando sobre o amor: se vamos encontrá-lo, como iremos conquistá-lo, se seremos merecedoras, se iremos perdê-lo.

E mesmo quando em relações homessexuais continuamos à mercê desse ideal. Ainda buscamos no amor uma forma de validação, ainda continuamos nos moldando para alguém, como se fosse o amor o responsável por nos dar forma.

Carregamos correntes que, pesadas, nos imobilizam: só podemos amar uma pessoa, precisamos dar conta de todas as demandas dx outrx, quem ama não sente desejo por mais ninguém e nunca perde o tesão nx parceirx. Há, aí, um conjunto de crenças e expectativas que, combinadas a atitudes e comportamentos vão minando não só nossas relações como desestabilizando quem somos.

Existirmos, a que será que se destina?

Temos potencialidades infinitas e ferramentas internas que, se identificadas, nos habilitam ao florescimento humano, nos ajudam a olhar pra dentro. Ao assumirmos um compromisso com a gente mesma de nunca nos deixarmos para lá, pegamos as rédeas das nossas vidas nas mãos. E isso não é sobre rechaçar o amor, mas sobre entendermos como podemos, enquanto mulheres, cultivar nosso próprio eixo dentro ou fora de relações amorosas. É sobre como deixamos de desperdiçar energia tentando ajustar nossas vidas a crenças e mitos e como passamos a criar nossa própria história.

É claro que estar em uma relação lúcida é gostoso, mas não pode ser o único arranjo possível que nos deixa bem e que mede nosso êxito social e realização pessoal. Até mesmo porque nem o próprio amor tem exclusivamente por objeto uma pessoa. Amar é amplidão: engloba a nós mesmas, outras coisas, gentes, animais, lugares, memórias. Por que nós, então, deveríamos limitá-lo a um único ser responsável por nossa felicidade? Que comecemos uma pequena revolução embaixo de nossas próprias peles e que saibamos como nutrir esse sustentáculo que nos mantêm atentas, presentes, completas, com os pés firmes no chão — em relacionamentos amorosos ou a sós com a gente mesma.

Aqui na Comum, estamos olhando com carinho para autonomia afetiva. Nossa próxima trilha está sendo preparada com cuidado para que possamos, juntas, explorar essa temática — clique aqui para saber mais. Ela deve começar na segunda metade de setembro, mas enquanto isso, vamos esquentar a conversa? Quero ouvir seus vividos aqui na caixa de comentários ou, se preferir, na minha caixa de emails em gabrielleestevans@gmail.com. Seguimos.



Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo, coordenadora de projetos com propósito e cientista poética. Certa feita, enamorou-se pela palavra inefável. Desde então, também mantém uma lista de pequenas coisinhas indizíveis.