A escola na qual estudei durante o ensino fundamental e parte do ensino médio tinha em seu calendário anual um concurso de beleza para meninas. Quando estávamos no primeiro ano, uma colega de classe foi a coroada. Mal a reconhecemos quando apareceu toda produzida na noite da competição. Éramos muito novas pra entender as nuances do que se passava ali, enquanto adolescentes desfilavam, eram observadas e julgadas pelo público.
Na mesma época, uma outra colega foi diagnosticada com bulimia.
Aos 18 anos, fui eu quem me inscrevi num desses concursos. Durante os dias de competição, vi muitas jovens abatidas, preocupadas com sua aparência, fazendo os últimos ajustes possíveis para se encaixarem no que era considerado bonito. Algumas chegavam a não comer. Não era o meu caso já que sempre fui magra, mas outras autocríticas não me deixavam em paz.
No ano passado, uma irlandesa de 11 anos se suicidou por estar infeliz com a sua aparência.
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Não são relatos distantes do que acontece com a maioria de nós, diariamente, são? Você, mulher, alguma vez se olhou desnuda, no espelho, sem julgamento ou sem procurar o melhor ângulo? Quantas vezes já ouviu alguma amiga dizer que está satisfeita com a própria aparência? Quantas de nós já fizemos dieta ou cirurgia estética?
Não pergunto para que, mais uma vez, nos cobremos excessivamente. As indagações servem para que olhemos os porquês pelos quais buscamos esse ideal de corpo que — inatingível por ser justamente um ideal — só nos faz sofrer, dilacerar, que faz com que a gente se mutile para se adequar.
Somos, todas, em diferentes escalas, vítimas da pressão estética. Aqui, antes de mergulharmos no assunto, cabe um parênteses: pressão não é opressão. Rachel Patrício, em nossa série sobre gordofobia, explica, de forma bastante acessível, como podemos aprender a diferenciar isso e aquilo e, mais importante, como podemos ajudar a combater opressões — nem que seja começando pelo básico que é entender lugar de fala.
Parênteses fechado, seguimos sabendo que pressão não é opressão, mas também machuca.
Homens podem contra-argumentar dizendo que “Ah, mas padrões estéticos aprisionam corpos masculinos”. De fato, é algo que pode acontecer. Mas, então, qual a diferença?
O “mito da beleza” — termo cunhado e transformado em obra homônima por Naomi Wolf — chega como substituto de dominação depois da segunda onda feminista que tirara a aura doméstica da mulher. Wolf nos mostra como essas construções sociais do que as mulheres têm de ser e como devem parecer servem para nos manter no lugar que sempre ocupamos: o segundo. A indústria da beleza e o culto a uma imagem ideal manipulam imagens que minam nossa resistência psicológica e material.
Essa corrida desenfreada pelo corpo perfeito começa ainda muito cedo, ganhando força na adolescência, quando buscamos uma identidade e queremos afirmar nossa personalidade. Já na vida adulta, deixamos de lado o projeto vidão e apostamos no projeto verão. Cada segunda-feira, cada mês de janeiro é uma tortura.
Mulheres gordas sofrem pressões e opressões diariamente. Além da série sobre gordofobia, já tratamos por aqui de assuntos como frases gordofóbicas que reproduzimos sem nem pensar e dicas práticas para tornar o mundo menos gordofóbico.
E não é só. Os padrões estéticos também são racistas.
“Diz um ditado popular que a beleza está nos olhos de quem vê. Será mesmo? Para a professora da Universidade de Drexel, nos Estados Unidos, Yaba Blay, a beleza é algo construído socialmente, e confere privilégios para quem a detém. Embora varie de local para local, ela diz que há um padrão mundial de beleza. Basta colocar a palavra beleza no Google que aparecem páginas e páginas, predominantemente de mulheres brancas.”
(texto extraído de artigo originalmente publicado no portal Geledes.)
Para destrinchar essa temática, a Comum produziu duas entrevistas com mulheres incríveis que vêm, aos poucos, tentando confrontar essa lógica que está posta na mesa. A primeira você confere agora, com a maquiadora Vanessa Rozan, apresentadora do ótimo Meu Glitter, minha vida — que faz um trabalho bonito de soltura das amarras dessas prisões estéticas.
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O mito da juventude prolongada e da beleza estão ligados, diretamente, com a necessidade da mulher ser aceita. É uma pressão social que atinge todas as mulheres?
Acho, pelo que estudei sobre esse assunto, que todo mundo no fim quer ser aceito e amado. Homens e mulheres. Mas, diferente dos homens, as mulheres ainda são criadas para que essa questão de ser aceita esteja muito ligada à imagem, não tanto à personalidade. Enquanto do lado masculino é mais a personalidade, o status, o poder, a força — atrelado às vezes também ao físico —, do lado feminino, ser aceita está conectado com o fato de ser bonita. Isso começa na primeira infância, na inocência de um elogio que fazemos a uma criança — “como você está bonita”, “que menina linda, parece uma princesa” — e não pensamos muito. Ou ainda a forma como criamos meninas, replicando muitas das coisas que vivemos. Tudo isso atinge a maioria das mulheres. É um percurso que você faz. Como tem a jornada do herói, a gente faz o percurso do mito da beleza. Somos levadas pra essa matrix, vivemos nisso e para desconectarmos desse modo de operação e de vida ligado à beleza e essa obsessão ligada à juventude, você precisa tomar a pílula vermelha. Então é um processo, demora muito tempo e atinge a maioria das mulheres de diferentes formas. Às vezes mais intensas, às vezes mais sutis. É uma cobrança que não tem fim e muitas chegam à beira da loucura, tomando remédios e tantas outras coisas.
Há, dentro do feminismo, debates constantes e urgentes quanto à lugar de fala. Quando abordamos a pressão estética, por exemplo, estamos tocando em um destes pontos. Uma mulher dentro dos padrões de beleza atual pode falar sobre essas prisões? Ela chega a sofrer com isso?
Existe lugar de fala. Gordas vão falar de gordofobia e de padrão de beleza de um outro ponto de vista do que uma mulher que está inserida nesses padrões não pode falar. Existe lugar de fala e o mito da beleza é amplo. Além da beleza, é também sobre como você se comporta, como se veste, o que consome, o livro que você lê. Não é só ser bonita: tem de tomar o suco verde, ser malhada, não pode ser magra demais. Esse mito foi se desenvolvendo e descolando da magreza e do corpo de modelo que aconteceu nos anos 90 e se alastrou também para a saúde. Por isso a gente vê, hoje, discussões importantes que tentam, por exemplo, dissociar corpos gordos de doença. O mito da beleza grudou na questão do fitness e da alimentação e das dietas — o que nutre não só a indústria dos cosméticos, mas a própria indústria alimentícia. Então, voltando à pergunta, existe lugar de fala, mas, em todos esses lugares, quem fala são mulheres. Ainda estamos nesse mesmo lugar, que é essa prisão essa pressão. A mulher magra vai ficar noiada porque se ela engordar um pouquinho “meu deus, o que vai acontecer?”, ou se aparecer uma ruga “nossa, não pode!” porque temos de cuidar da manutenção dessa estátua que não tem direito a envelhecer nem a ter alterações hormonais, do corpo, do tempo. São prisões diferentes, são lugares diferentes, mas ainda assim continua sendo o mesmo ambiente.
Você é maquiadora e lida diariamente com essas prisões. Também apresenta o programa Meu Glitter, Minha Vida em que tenta desconstruir essa ideia de que a maquiagem serve para nos ajustar a padrões. Como é a aceitação desse tipo de resistência dentro do universo da beleza?
Trabalhei muito tempo falando o que as pessoas tinham de fazer: faz isso, passa assim, pra ficar assim. E tanto eu quanto a Fabiana Gomes — maquiadora e também apresentadora do Meu Glitter, Minha Vida —, que falamos sobre beleza e acompanhamos toda a questão dos tutoriais e inserções das redes sociais na nossa vida, percebemos que existe uma massificação daquilo que é o que você tem de fazer pra “ficar bonita”. E a gente encontrou um jeito de falar disso ou de discutir isso montando um canal. E aí veio o Meu Glitter, Minha Vida. Porque eu percebo que todas as clientes, mesmo as que vão fazer aula de automaquiagem, sentam na cadeira e basta ligar a luz e colocar no espelho na frente que a primeira coisa que elas fazem, automaticamente, é achar um defeito. Seja a sobrancelha que não está feita ou a pele que está horrível ou a olheira assustadora. Eu, que estou olhando mulher todo dia em vários cenários, seja na TV, em palestras pelo Brasil todo, em desfiles, digo: “gente, não é nada disso. Sua sobrancelha está ótima. Às vezes não dá pra tirar, às vezes você não quer ou, afinal, por que tem de tirar mesmo? E o programa questiona justamente isso. É um lugar que a gente pode falar o que quiser, sem estar atrelado a nenhuma marca, um lugar só nosso. E eu tento nas palestras que faço começar falando justamente sobre isso: que as redes sociais, o Intagram, os youtubers ensinam muito pra gente, dão várias dicas incríveis sobre produtos, mas que a maquiagem feita ali é uma maquiagem para efeito. Quanto mais impactante for a transformação, o antes e o depois, mais a pessoa irá conseguir impactar. Quanto mais contrastante for o antes e depois, mais dramática visualmente, mais você vê a maquiagem. Para mim a melhor maquiagem é aquela que você vê a pessoa. Já chego falando que detesto transformação, nao vou transformar ninguém em ninguém. Eu trabalho só aprimorando, realçando aquilo que já existe, chamando atenção pra uma coisa que, às vezes, não está tão destacada como pode ser. A ideia de “transformação” é algo que vem há muitos anos. Programas de transformação do visual, antes e depois. Ficamos muito visualmente impactados por isso. Temos, portanto, um trabalho contínuo de questionar e trazer um olhar crítico sobre beleza. Para que as pessoas olhem com critério. Para que elas chegam às bancas e olhem todas as capas de revista e se questionem: O que você encontra ali? Negras? Como é o nariz? Como é o cabelo? São brancas? Asiáticas? E percebam, nas entrelinhas, o que é que está por trás daquelas imagens. Algumas marcas e algumas revistas já têm levantado questionamentos sobre padrões de beleza. E, embora isso esteja acontecendo, as pessoas ainda querem aprender aquela maquiagem do Instagram, que foi feita para ser fotografado de olho fechado, para mostrar o efeito com blur, filtro, luz certa — uma maquiagem que não é pensanda para a vida real. É um trabalho de formiguinha, no um a um, no qual eu vou convidando as pessoas a olharem de forma diferente a beleza. E eu espero que funcione para que a gente possa realmente mudar algo.
Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo, coordenadora de projetos com propósito e cientista poética. Certa feita, enamorou-se pela palavra inefável. Desde então, também mantém uma lista de pequenas coisinhas indizíveis.