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#26 [texto final] Luto: uma jornada de vida

Passamos os últimos dois meses encarando a finitude por diferentes perspectivas, mas com um único mantra ecoando, lá no fundo:

A morte não é um acontecimento, é um processo de vida.

Foto de Beatriz Xavier, nossa artista convidada na trilha de Finitude

Foto de Beatriz Xavier, nossa artista convidada na trilha de Finitude

"Nos entorpecemos contra a dor da realidade inevitável mantendo nossas mentes ocupadas e entretidas, e fazendo planos elaborados para o futuro. De certa forma, isso é precisamente o que faz os seres humanos tão incríveis, mas a falha é que, fazendo isso, criamos um falso senso de segurança. Nós nos esquecemos que não podemos escapar da nossa própria morte e da morte de todos aqueles que conhecemos e amamos."

Tradução livre de trecho do livro Viver é morrer: como se preparar para morrer, para a morte e além, de Dzongsar Jamyang Khyentse. Íntegra disponível aqui.


Para morrer, temos de estar vivos. Para que algo termine, tem de estar em curso, acontecendo, vivo e pulsante. A morte, portanto, não é o antagonismo da vida, pelo contrário. É parte crucial dela.

Também, morte não é só morte, stricto sensu. Muito embora a experiência de passar pela morte de alguém ou pelo processo do próprio fim seja a forma mais clara e patente de perder algo — nesses casos, algo tão importante como a vida de uma pessoa querida ou a nossa própria — a perda pode se dar de várias formas e ganhar diferentes cores. O final de um ciclo, o envelhecimento, uma transição de carreira ou a mudança de trabalho, o término de uma relação. E não há medida para o sofrimento, nem certo ou errado para as emoções que esses finais nos trazem.

“A vida é uma sucessão de começos e fins, embora a gente insista em focar apenas nos primeiros. Louças antigas se quebram, remédios têm efeitos colaterais, sofás desbotam com o sol que entra pela janela. E um dia, por distração, esquecemos na sala de cinema aquele casaco preferido. Planos dão errado, sociedades chegam ao fim, amigos se mudam para longe e amores podem não ser correspondidos. O mundo pode acabar muitas vezes em uma vida só.”

Cris Guerra, em texto-relato para essa trilha

Foi com coragem que passamos toda a jornada fazendo o extremo oposto do que costumamos fazer no dia a dia: nos propusemos a contemplar a potencial finitude de tudo que nos cerca e treinamos imprimir um novo olhar para ela. Ressignificar a morte, simbólica e real, na nossa trilha, passou longe de pretender extrair a tristeza dos processos de perda. Do contrário, demos uma volta, 360 graus, ao redor do assunto, e miramos a morte de novos lugares, com olhos frescos e curiosos, às vezes tristes e às vezes não.

Ao contemplar a impermanência inegável das coisas, e a nossa própria, com a morte certeira, descobrimos também que esse exercício vai bem além de ressignificar um conceito, enfrentar o medo de morrer ou perder, de se acostumar com a idéia de que tudo, um dia, vai acabar. Falar de morte abertamente é, principalmente, trucar a própria vida.

Esse é o maior poder implícito da morte: colocar em cheque aquilo que entendemos por viver, os nossos próprios apegos e fixações, quem achamos que somos e queremos, o nosso julgamento sobre os outros e as coisas que nos circundam.

"Nos fixamos em métodos que usamos para tentar provar para nós mesmos que existimos. Ainda, tudo o que imaginamos ser e tudo o que sentimos, vemos, ouvimos, experimentamos, tocamos, avaliamos e julgamos é atribuído - no sentido de que foi condicionado pelo seu ambiente, cultura, família e valores humanos. Quando conquistamos essas atribuições e os condicionamentos, nós também conquistamos o medo da morte."

Viver é morrer: como se preparar para morrer, para a morte e além.

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"A gente chega atrasado na vida. Você só se dá conta do seu tempo quando você recebe um diagnóstico. Por isso que eu penso que pensar na morte de maneira responsável, comprometida, honesta, sem ser papo furado de boteco de sexta a noite, baseado em livros de filosofia ou de auto-ajuda, você ter essa conversa todo o dia com a sua morte e perguntar, o que vale a pena mesmo? O que eu realmente estou querendo com o meu tempo até o último dia da minha vida?"

Ana Claudia Arantes, em vídeo entrevista para essa trilha.

Lidar de forma cuidadosa com a morte é, ao mesmo tempo, refletir sobre a própria existência. E não precisamos fazer isso apenas quando ficamos doentes, quando estamos em sofrimento por uma perda ou então quando vemos nosso futuro, conforme planejamos, ameaçado por algo que nos aconteceu. Podemos fazer já, agora, em plena vida e em momentos de estabilidade.

Um ensinamento que surgiu por aqui, de várias mulheres diferentes que nos ajudaram a mergulhar no assunto, foi esse: espreitar a morte é um exercício diário e sem igual, que precisamos seguir nos propondo a fazer. Nos leva a repensar certezas, verdades, parâmetros e condicionamentos. Nos ajuda a relativizar tudo, a reconsiderar, repriorizar. Afrouxa a mão com a qual agarramos as coisas, as pessoas, as ideias — o que não significa perder a obstinação e o foco, pelo contrário. Ao olhar para a morte (e para os fins) como algo tão possível quanto comprar uma casa, tropeçar na rua ou comer um misto quente, a vida ganha um efeito 4D: dimensões antes não vistas se apresentam, como um chamado fatal para o que realmente importa.

"Planejar o futuro é como pescar em uma ravina seca. Nada nunca acontece como você quer, então desista de todos os esquemas e ambições. Se você tiver que pensar em algo pense sobre a incerteza da hora da sua morte."

Tradução livre do Livro tibetano da vida e da morte, de Sogyal Rinpoche.

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"Se você se sentir inundado pelo medo da morte, apenas olhe para isso. Não pense sobre o que você acha que deveria fazer ou como deveria fazer."

Dzongsar Jamyang Khyentse

Até agora, e com a ajuda de mais de vinte mulheres que estudam o tema — por meio de textos, vídeos, encontros online e presenciais — demos a mão para a morte: olhamos para dentro e para como a nossa cultura valoriza o ganho e tragedifica as perdas; chegamos mais perto das perdas que socialmente invisibilizamos, como a de negros e periféricos, e daquelas que evitamos, como a de nascituros e bebês; falamos sobre a importância das perdas que geram, coletivamente, a necessidade de transformar o cenário nacional; entendemos os conceitos e impermanência e fizemos práticas simples de como espiar o fim no dia a dia. Para tudo, tivemos a costura cuidadosa da Dra. Ana Claudia Arantes, que ao estudar cuidados paliativos e apoiar pacientes e famílias em processos de morte mais serenos, revela também aprendizados importantes sobre como podemos viver melhor.

Visitem e revisitem esse conteúdo precioso, sempre que quiserem, na página da trilha (que vai para o ar na semana que vem). Ele não tem data de validade: é eternamente útil e poderoso.

Para mim, o processo foi e segue sendo intenso. Cada história que ouvi, li e assisti, de perdas e transformação a partir de lutos de diversas mulheres, foi uma lufada de ar fresco e um lembrete de que eu não estava só. A minha história era compartilhada. O fórum tem essa potência: de nos conectar com mulheres tão diferentes e tão parecidas conosco, e que formam uma rede ampla de apoio mútuo, sempre ali, disponível.

E para você? Quais os aprendizados de encarar a morte como uma personagem importante da sua história? Qual o seu processo de perda? Te espero no fórum, para trocarmos sobre as nossas experiências e seguirmos exercitando um olhar compassivo e constante para a impermanência, juntas.

Essa jornada não termina aqui. É uma trilha que segue: de hoje até o dia em que partirmos.

Seguimos.


Anna Haddad é fundadora da Comum. Trabalha com projetos que envolvem gênero e educação, principalmente no campo social, e escreve sobre o assunto por aí.


A nossa conversa segue sempre no fórum:

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