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#15 [prática] Nota mental: faça o seu próprio testamento vital

"Façam um testamento vital amanhã."

Foi assim que Elca Rubinstein, 72 anos, phD em economia, ex-professora da UNB e USP além de ex-integrante do Banco Mundial, começou o Death Cafe que organizamos em São Paulo.

A recomendação direta e incontestável de que todas as mulheres ali presentes — a maioria entre 25 e 35 anos — escrevessem, o quanto antes, seus próprios testamentos vitais, não veio assim, a seco. Brotou com suavidade, em meio a histórias pessoais que narraram a própria experiência de Elca com a velhice e a morte: "Conforme eu fui envelhecendo, os questionamentos começaram a surgir. No início, eu sempre pintava meu cabelo. Tinha que retocar a raiz a todo o tempo. Até o momento em que resolvi aceitar o branco e passei a me sentir igualmente ou mais interessante que antes”, disse.

Nessa fase, ela produziu o documentário Banco & Prata, sobre cabelos grisalhos. A partir daí, começou a se relacionar mais intimamente com a morte. Foi assim que chegou no seu primeiro Death Cafe, no exterior, e saiu decidida a dedicar seu tempo para criar esses espaços no Brasil.

Testamento vital é um documento por meio do qual podemos nos manifestar sobre cuidados, tratamentos e procedimentos aos quais queremos ou não queremos nos submeter em caso de doença que traga risco de morte. São as chamadas diretivas de vontade. Muito embora o testamento vital tenha sido regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) no Brasil, o fato de ainda não haver legislação específica que o regule faz com que o documento não tenha sido incorporado na rotina dos hospitais e das pessoas.

Já em países como os Estados Unidos, é algo bastante natural. Lá, para dar entrada em um hospital e realizar alguma intervenção, por exemplo, é necessário que o documento esteja preenchido. Se as coisas se complicarem, alguém já estará a cargo das decisões e a equipe médica saberá como agir. "Se o documento não estiver pronto, você tem de voltar para a casa e remarcar a intervenção”, conta Elca.

Ainda nos Estados Unidos, é bem comum que as pessoas deixem seus testamentos em um saco plástico ziploc, dentro do congelador: quase todo mundo tem freezer em casa e isso facilita muito que qualquer um encontre o documento, principalmente um socorrista em uma situação de emergência.

Mas quando Elca sugeriu que as mulheres ali fizessem os seus próprios testamentos vitais, um silêncio tomou conta da sala. Ainda que todas estivessem abertas para falar sobre a morte, o tema central da conversa era o processo de falecimento de entes queridos. Ninguém estava se propondo a olhar, de fato, para a própria finitude.

Estamos imersos em uma cultura que evita o assunto da morte a qualquer custo.

Retrato de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

Retrato de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

"Se falamos sobre morte com alguém que está com uma doença grave, parece que estamos cometendo um pecado. É como se a estivéssemos evocando, jogando uma praga, e não falando sobre algo natural, possível de acontecer."

(Camila, assinante da Comum)

Contudo, quando a conversa gira em torno da nossa própria morte, e ganha tamanha cor e detalhamento — como é o caso do testamento vital, que exige que criemos na mente situações hipotéticas de doença — o tabu se reforça ainda mais. Preferimos colocar o assunto debaixo do tapete, sem notar que, ao fazer isso, estamos nos deixando à mercê de procedimentos hospitalares muitas vezes assépticos e desumanos, e da decisão de familiares e amigos sobre a nossa saúde e os nossos cuidados, assuntos que, muito provavelmente, nunca tratamos com eles com a profundidade necessária.

Até onde você iria para tentar remitir um câncer em estágio avançado? Quem gostaria que estivesse ao seu lado nesse momento? Quais são seus limites pessoais, com relação a tratamentos médicos e hospitalares?

"Eu não ligo para alimentação parenteral (endovenosa, por tubos), mas não suportaria não ter controle do meu intestino, por exemplo. Esse é um limite meu: ficar de fraldas tendo que esperar que uma enfermeira me troque”, compartilhou Elca, com naturalidade e humor.

Aconselhar-nos a fazer os nossos testamentos foi um meio bonito e pragmático que Elca encontrou de nos dizer para contemplarmos a nossa morte como algo possível e inevitável: para morrermos, basta estarmos vivos — é o ditado popular. Mais que isso, o testamento é uma ferramenta para pensarmos, em detalhes, com franqueza e carinho, nos nossos desejos para um momento adverso de doença e esmorecimento.

Pode parecer algo fúnebre, mas não. Pelo contrário. É um exercício belo e real, que tangibiliza a nossa impermanência, dá luz para as nossas vidas e incorpora o assunto no âmbito familiar com responsabilidade e abertura.

Por isso, a prática de hoje é exatamente a que Elca nos propôs. Que cada uma de nós faça um testamento vital.

Se não sabe por onde começar, você pode se basear no Five Wishes (Cinco desejos), uma diretiva americana criada pela organização não-governamental Aging with Dignity (Envelhecendo com dignidade). É um documento, que nos guia na elaboração de um testamento através de 5 desejos:

Desejo 1: a pessoa que eu quero que tome decisões por mim quando eu não puder mais tomá-las.

Desejo 2: O tipo de tratamento médico que eu quero ou não quero.

Desejo 3: O quão confortável eu quero estar.

Desejo 4: O que eu quero que as pessoas que eu amo saibam.

O documento, em inglês, está disponível aqui e pode ser um bom modelo para que você crie o seu testamento. No mais, basta intenção, coragem de mirar a nossa condição humana — e portanto findável — papel e caneta. Não há requerimentos ou burocracias. Depois de escrever, guarde em um ziploc dentro do seu congelador e avise familiares, companheiros e amigos.

Se sentir vontade, compartilhe o que você descobriu no processo de elaboração do seu documento, dificuldades, idéias e sentimentos no nosso tópico de finitude no fórum.

Vamos juntas em uma jornada de vida que se sabe finita e, por isso mesmo, pode ser ainda mais plena e rica.


Anna Haddad é fundadora da Comum. Trabalha com projetos que envolvem gênero e educação, principalmente no campo social, e escreve sobre o assunto por aí.


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