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#10 [relato] O fim como princípio

Eu tinha 23 anos quando meu pai me chamou ao seu consultório para uma conversa em particular. "Você precisa se preparar para a morte da sua mãe", me avisou. Nem todo amor vem embrulhado em doçura. O que meu pai queria era minimizar meu sofrimento e garantir que minha mãe nos tivesse por perto frente ao quadro que se desenhava — depois de um ano de tratamento, o câncer apresentava metástases.

"Ninguém se prepara para a morte, pai", foi o que respondi. Mantenho minha filosofia: a de me preparar para viver, isso sim, da melhor forma que puder, lição esta que a própria morte nos dá. Ignorei os exames para acreditar no impossível — dar a minha mãe alguma qualidade de vida pedia que eu a poupasse de qualquer olhar de despedida. Fiz de tudo para tentar trazer a ela algum bem estar, até que o sofrimento ficou maior que a dignidade e eu passei a pedir por sua ida. Amar alguém é ser capaz de sofrer em seu lugar para que a dor enfim termine. Fins também têm seu lado bom.

Imagem de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

Imagem de Beatriz Xavier, fotógrafa convidada para ilustrar nossa trilha de Finitude

Sete anos depois, era a vez do meu pai sucumbir ao câncer. Cada um enfrentou a doença por dois anos e, em ambos os processos, o mais difícil era conviver com a ideia da morte iminente. Mas um raciocínio me perseguia: temos sempre notícias sobre alguém que morreu de câncer, mas raramente sobre os que viveram depois da doença. A cura nunca será definitiva como a morte. O que uma doença grave faz é nos aproximar da certeza que passamos a vida ignorando. Antes do diagnóstico, gostamos de acreditar que a morte só acontece para os desafortunados. Mas é justamente por ser comum a todos nós que ela nos ensina tanto sobre a vida.

Pouco depois da perda do meu pai, eu me casei. Em três anos sofri dois abortos espontâneos, me separei e comecei outro relacionamento. Eu estava no sétimo mês de gravidez quando ouvi meu namorado dizer que precisava visitar em São Paulo o tio que enfrentava uma doença terminal. Não houve tempo, porém, para aquela despedida, já que seu coração parou poucos dias depois — o do meu namorado, não o do tio. Aos 38 anos, o pai do meu filho, teve uma parada cardíaca, sem um diagnóstico prévio. O fim súbito com o qual tive de aprender a lidar veio praticamente junto com meu começo mais bonito: o da maternidade.

Vivenciar perdas importantes me ensinou que expressar o amor é a primeira e grande urgência. Sou grata por ter colocado a lição em prática antes da despedida mais difícil.

Tantas perdas em um curto período de tempo teriam feito de mim a perfeita mãe superprotetora, do tipo que embrulha o menino em plástico-bolha até que ele complete 18 anos. Mas, junto com o Francisco, crescia meu mais importante aprendizado: não sou capaz de controlar a vida. Nem eu, nem ninguém. O que de certa forma é um alívio, já que não tem a menor graça brincar de Deus sem poder pedir altas. É uma liberdade descobrir que algumas coisas simplesmente não dependem de mim — e fundamental aprender a discernir quais são elas. Foi assim que acolhi o aprendizado da entrega, que me ajudou a construir com meu filho uma relação de cumplicidade, mas não de dependência. Uma leveza que procuro levar para todos os outros setores da minha existência.

Cris e Francisco, hoje com 11 anos

Cris e Francisco, hoje com 11 anos

A vida é uma sucessão de começos e fins, embora a gente insista em focar apenas nos primeiros. Louças antigas se quebram, remédios têm efeitos colaterais, sofás desbotam com o sol que entra pela janela. E um dia, por distração, esquecemos na sala de cinema aquele casaco preferido. Planos dão errado, sociedades chegam ao fim, amigos se mudam para longe e amores podem não ser correspondidos. O mundo pode acabar muitas vezes em uma vida só.

Lembro de uma das primeiras vezes em que perdi o chão. Eu tinha 15 anos e levei um fora do primeiro namorado. Parecia interminável aquela dor-de-cotovelo. Um dia passou. Meu mundo, desde então, acabou muitas outras vezes, até que eu aprendesse a colocar a serenidade no lugar do desespero. Viver temendo o pior só elimina a possibilidade do melhor. Viver tentando, teimosa e insistentemente, é não aceitar os ciclos que já terminaram e se negar a receber os presentes que nos aguardam depois deles. Parar de tentar pode ser finalmente o começo.

Quando o pior acontece, somos obrigados a aceitar o que não pode ser mudado. E então percebemos que só nos cabe transformar a nossa forma de vivenciar as coisas. É nessas horas que aprendemos a agir com a coragem inédita de quem não tem nada a perder.

Lembro de quando uma caminhonete bateu na traseira no meu carro enquanto eu esperava o semáforo abrir. Ninguém se machucou, tudo foi resolvido em 15 dias de oficina, mas o pequeno susto ficou ecoando na memória. Por um tempo, assim que o sinal fechava, eu ficava vigiando o retrovisor. Então parei para pensar: todo dia, confiamos que atrás de nós o freio do mundo vai funcionar. Ter medo de quê, se cada nova manhã é um exercício involuntário de fé?

A vida é risco constante — esse é seu preço. Entre os grandes perigos está o de conquistar exatamente aquilo que sempre sonhamos. Mas para sonhar é preciso viver o agora e deixar o fim para o fim. Na hora certa a gente experimenta isso.


Cris Guerra é comunicadora e escritora. Sua obra de estreia, Para Francisco, está sendo adaptada para o cinema. Também é colunista de várias publicações e viaja pelo Brasil ministrando palestras comportamentais.


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