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Como educamos mulheres para sofrer — uma reflexão sobre feminilidade e amor

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Uma das partes mais complicadas de ser mulher, pelo menos para para mim, foi a necessidade de reconstruir constantemente dois conceitos fundamentais: amor e feminilidade. Estes elementos estão intrinsecamente ligados e, quando ambos são distorcidos, o resultado dessa mistura é sempre perigoso.

Durante a minha vida, posso afirmar que já tive de desmontar minhas ideias a respeito desses dois conceitos mais vezes do que eu gostaria. E cada vez que o fiz, foi porque eu acreditava em um tipo de amor que me fez sacrificar minha individualidade e até mesmo minha integridade como ser humano; ou então porque acreditava que minha essência como mulher estava em ser alguém que se esforça incessantemente para agradar os outros  —  incluindo meus parceiros: 

Viver numa sociedade que nos molda para o olhar masculino é constantemente re-aprender a ser mulher.

Feminilidade

A ideia da feminilidade é um conjunto de atributos que torna alguém feminina; uma miríade de características ligadas ao gênero feminino. A feminilidade engloba a aparência física da mulher, seu comportamento, suas vontades, etc. Em termos de aparência, por exemplo, a feminilidade é quase sempre coincidente com o padrão de beleza vigente.

Na época atual, uma mulher feminina é magra, com seios e bumbum fartos, tem cabelos compridos, usa maquiagem, unhas longas, sapatos de salto e depila seu corpo. Em termos comportamentais, ela quer se casar, deseja ter filhos, não é chefe de família, não é ambiciosa, não discute, não confronta, não levanta seu tom de voz, não pronuncia sua opinião. Em outras palavras, é dócil e submissa. Ela também é altamente emotiva, carinhosa, cuidadosa, maternal e subjetiva, o que teoricamente a tornaria incapaz de tomar decisões de fundo racional, sendo frequentemente tomada pelos sentimentos.

O grande problema do modelo de feminilidade como o conhecemos é que ele aprisiona mulheres dentro de um ideal que não compreende ninguém que deseje ter um poder sociopolítico idêntico ao de um homem. Apesar de o cenário estar mudando cada vez mais e uma boa parte das mulheres andarem na contramão dessas premissas — por exemplo, o número de mulheres chefes de família só tem aumentado —, a expectativa da mulher extremamente feminina persiste. Ainda se espera que seu comportamento seja submisso e passivo, criado para a esfera doméstica, não para a esfera pública e social.

Além disso, características que são de extrema importância em relacionamentos interpessoais, como compaixão e subjetividade, são estigmatizados como inferiores, exatamente por serem associados à imagem feminina.

Na nossa sociedade, o feminino não só é considerado secundário, como também subalterno. Não a toa, termos como “mulherzinha” são considerados ofensivos.

Esteticamente, a mulher feminina está necessariamente fora do seu estado natural: se deixarmos duas crianças, uma garota e um garoto, chegarem aos 18 anos de idade sem intervenções estéticas, o garoto será considerado masculino. A garota, contudo, estará longe de ser considerada feminina. O reflexo de uma cultura que recrimina a mulher que se distancia da feminilidade é a quantidade de procedimentos de beleza disponíveis no mercado, desde maquiagens até cirurgias para diminuir os lábios vaginais. Poderosas indústrias se erguem através de um movimento sistemático de primeiro abrir buracos na autoestima das mulheres, para depois oferecer-lhes produtos e serviços que supostamente lhes tampam.

Amor

Conhecemos o amor de várias maneiras: amor paterno, materno, fraterno, romântico. O que todos eles possuem em comum é a capacidade inesgotável de proporcionar carinho, afeto, suporte, companheirismo, cuidado, segurança, cumplicidade. Amar alguém é algo tão maravilhoso que nos juntamos para vivenciar isso, em grupos, em casais, em famílias. É um sentimento que nos liga, sem prender. Que cria raízes, não âncoras. Contudo, muitas vezes recebemos uma educação bastante desviada a respeito do amor.

Quando somos pequenas e um garoto toma alguma atitude violenta, tal como puxar nosso cabelo ou dar um beliscão, somos encorajadas a acreditar que este pequeno delito é na realidade, uma demonstração de afeto. “Ele faz isso porque gosta de você”, nos dizem. Desde cedo, somos levadas a crer que devemos nos calar diante de atos que nos incomodam, agridem ou simplesmente não nos agradam, porque estes fazem parte daquilo que se chama amor. E por vezes, este amor não coincide de maneira alguma com o amor que recebemos, por exemplo, de nossos pais.

O carinho, o abraço de uma mãe, que nos traz conforto e acalento e é até o momento o que conhecemos por amor, passa a ter que dividir espaço com o beliscão dado pelo garoto na escola, que dói e machuca. E isso não faz sentido algum.

De forma complementar, aprendemos que determinados comportamentos fazem parte de uma suposta “natureza masculina”: homens não conseguem se controlar ao ver uma mulher atraente; são naturalmente propensos a infidelidade; são agressivos; agem por impulso por causa de seu “instinto animal”; entre outras mentiras. A função da ideia da “natureza masculina” é, por sua vez, legitimar todas as atitudes desrespeitosas, violentas e irracionais que um homem possa ter com mulheres. Assim, não resta opção para a mulher que não seja aceitar que seus relacionamentos com homens sejam permeados por esses comportamentos, porque “homem é assim mesmo”.

A partir daí aceitamos o beliscão do garoto na escola, um namorado que “dá umas escapadas”, um tio que faz comentários inadequados sobre nosso peso. Também somos ensinadas a aceitar abusos e assédios, e até mesmo a absorver culpa por eles, fenômeno que integra o que conhecemos como cultura do estupro.

Para além de aprendermos a associar violência com amor, nosso conceito de amor romântico está intimamente ligado à monogamia. Mulheres acreditam que devem ter o menor número de parceiros possível, já que ter vários é visto como algo que lhes desvaloriza (um conceito profundamente objetificante), e rapidamente buscar um com quem devem se casar. É sempre estimulado que busquemos um parceiro acima de qualquer coisa: de nossa realização profissional, de nosso desejo, de nossa satisfação sexual. A mulher pode até trabalhar e possuir uma profissão, mas sua realização ainda está presa ao casamento e à maternidade. A pressão existente para que uma mulher seja mãe é tamanha que é estudada como o conceito de maternidade compulsória.

Não que o problema seja exclusivamente tratar o amor como algo que surge do tipo de união que historicamente trata a mulher como moeda de troca, mas toda a carga comportamental e subjetiva do ideal monogâmico segue preservada. Essa carga inclui ciúme, controle, chantagens emocionais, isolamento dos amigos; e todos esses comportamentos problemáticos são tratados com tanta naturalidade que se tornam piada.

Ressignificando

Enquanto não questionarmos os conceitos de masculinidade e feminilidade, vamos continuar amputando as capacidades emocionais e psicológicas de homens e mulheres. É natural que em nações mais equânimes*, os índices de violência de gênero** sejam menores. Na verdade, os aspectos culturais que moldam os estereótipos de gênero agem tão profundamente que, nessas nações, o número de mulheres vítimas de depressão também é muito menor¹. É urgente que esses conceitos sejam repensados e reformulados em países como o Brasil, onde uma mulher é agredida a cada 12 segundos.

Não há nada de errado em se identificar com ideais estéticos de feminilidade, muito menos com desejar um casamento e filhos. Também não há nada de errado em não ser magra ou delicada, em não desejar um casamento e nem filhos.

Contudo, é sempre importante perguntar por que sentimos necessidade de ter determinados atributos ou comportamentos.

Será que sem as pressões sociais, ainda teríamos as mesmas vontades? Nós queremos o que queremos por desejo próprio ou porque fomos ensinadas que este é o padrão correto?

Homens precisam ser ensinados a desvincular sua autoimagem da masculinidade tóxica que aprendem. A autoconfiança masculina não pode estar conectada a uma ideia preguiçosa de natureza do homem, que bloqueia o desenvolvimento de compreensão, empatia e responsabilidade emocional. Não podemos censurar garotos por demonstrarem suas emoções, fazendo com que associem esse comportamento a algo negativo. Não podemos lhes negligenciar acolhimento e carinho quando se sentem machucados. A vivência humana é permeada de emoções; aprender a lidar com elas é parte fundamental de nosso crescimento. É necessário também trabalhar essas capacidades em homens mais velhos, para que possam se compreender e se relacionar melhor.

Porém, mais ainda, precisamos ensinar mulheres a não aceitarem nada menos do que respeito, dignidade e amor, como ele deve ser: uma fonte de energia, de aprendizado, de satisfação e realização conjunta.

Amor não é para doer. Ninguém deve se anular como indivíduo para que a pessoa que está ao nosso lado se sinta plena. 


 

Notas da autora: 
* Em que homens e mulheres são tratados de forma igualitária
** Feminicídio ou assédio, abuso sexual, estupro, violência doméstica e outros crimes cujas vítimas são em sua grande maioria mulheres.
¹ SOLOMON, Andrew. O demônio do meio dia  —  uma anatomia da depressão. 2001. Pp 170. É recomendada a leitura do capítulo Populações, para melhor compreender como estereótipos de gênero e sexismo afetam a saúde mental feminina.

Esse texto faz parte da trilha de Autonomia Afetiva da Comum e está inserido na primeira fase, em que estamos olhando para estereótipos de gênero a fim de compreendê-los para assim desconstruí-los. Na próxima fase, que se inicia essa semana, começaremos uma imersão para dentro, mirando mundo interno com cuidado e tato e descobrindo, juntas, como podemos cultivar o eixo e, assim, nutrir uma autonomia afetiva. Ficou interessada? Aparece por lá. Você fica sabendo mais da trilha aqui. Te esperamos. 
 


Débora Nisenbaum é formada em publicidade — e ainda não sabe o que fazer com isso. É colaboradora na www.ovelhamag.com.