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#5 Minha mãe e a comida

A forma como fomos introduzidas no mundo dos alimentos pelos nossos pais traz consigo uma carga importante, maior do que pensamos. Conscientemente ou não, no momento de apresentar todo esse mundo novo para um neném - onde a comida representa uma grande parcela -  um bastão é transmitido: as questões deles com a comida agora são um pouco nossas também.

Nesse contexto, o da infância, do resgate de como a história começou, vale a pena uma parada estratégica para colocar uma lupa especial na relação da nossa mãe com a comida.

É ela a grande mestra dos alimentos para nós, queiramos ou não. É ela, desde o começo dos tempos, que nutre pelo cordão umbilical. E esse nutrir vai bem além do objetivo e fisiológico: é, em pé de igualdade, um nutrir emocional.

Desde o útero, o bebê se relaciona com a mãe. Um dos meios é o mesmo por onde ele recebe alimento, que é o cordão umbilical. A partir daí, o ato de se alimentar já recebe uma conotação emocional, uma vez que é o mesmo que liga o feto à mãe, juntamente com seus sentimentos e emoções. - Vivilaine Maturana, Reflexões acerca da relação entre a alimentação e o homem

Aí vem o nascimento - o primeiro grande rompimento. O corte simboliza uma separação, um primeiro grau de independência, onde mãe e bebê já não habitam o mesmo corpo. A ruptura é repentina e difícil e obriga uma sobrevivência autônoma, um clamar pelo alimento, que já não vem mais sem algum esforço.

Segundo Donald Winnicott, a dureza dessa nova fase é amenizada pelo novo ato de nutrir, a amamentação, pela qual a mãe desenvolve com o bebê um outro jeito de trocar e de transmitir acolhimento, cuidado e amor.

É a partir da amamentação que começamos a estabelecer relações culturais, familiares e emocionais com a comida, que vão muito além do simples ato de se alimentar.

Essas conexões seguem estreitamente conectadas à figura materna com o passar dos tempos. Mesmo depois, mais velhos, a mãe segue - em uma visão social e cultural do patriarcado -  a responsável pela cozinha e pela alimentação das crianças, da família. Ainda que a dinâmica de nossas casas tenha sido um tanto diferente das usuais, depreendemos do mundo que é ela - nossas mães, as mães de nossas mães, as mães de nossos pais e tios, primos e amigos, a mãe simbólica - o modelo quando o assunto é comida. Comida e todas as conexões afetivas que se constroem a partir do alimento.

Essa relação afetiva inicial com o que colocamos na boca, uma vez aprendida, é levada com a gente pela vida afora, ainda que seja recriada e revisitada ao longo da nossa jornada, de acordo com nossas peculiaridades e o nosso meio.

Por isso, essa paradinha para olhar com carinho para nossa mãe e a comida é tão importante.

No vídeo acima, a Fabiolla Duarte conta um pouco da vivência dela nesse sentido: como ela herdou a relação da mãe com a comida. Já nesse texto aqui, que traduzimos e publicamos durante uma outra trilha da Comum (sobre sexualidade), a escritora Kasey Edwards conta das lembranças que tem da mãe dela fazendo uma série de dietas intermináveis e cultivando um ódio do próprio corpo. São dois relatos opostos e tocantes.

A ideia é que façamos o mesmo.

A pergunta da vez é: como a sua mãe se relacionava e se relaciona hoje com a comida? Para te guiar nessa pesquisa, sugerimos a prática abaixo.

Prática sugerida

Relaxe, respire fundo, vá para algum lugar onde se sente segura e confortável. Sem necessariamente racionalizar e forçar lembranças claras, tente se transportar para sua infância - qualquer fase dela.

Foque na sua mãe. Imagens dela, coisas que ela dizia, falava ou fazia. Vá se aproximando da figura materna dessa época, devagar. Lembre de momentos onde comida era é um ponto importante: almoços, jantares e lanches, reuniões familiares. Se aproxime desses momentos, das refeições. Como sua mãe se comportava? Como ela lidava com o alimento? Comia rápido ou devagar? Colocava atenção e energia na própria alimentação ou só servia os outros? Ela fazia dietas ou comia sem restrições?

E hoje, como é? A relação dela com comida segue a mesma? Se transformou com o tempo?

Não force nada. Deixe vir, no tempo que vier. As coisas mais sutis são importantes, e mesmo as faltas de lembranças (por exemplo, "não lembro de ver minha mãe comendo") são pontos cruciais dessa prática. É o que está dentro de você que importa, o que você decantou, aprendeu.

Por fim, anote tudo o que brotar de mais forte para você. Naturalmente você vai fazer paralelos e conexões, links, com a sua própria relação com a comida. Aproveite esse momento, sem afobação. Qualquer descoberta é lucro.

É importante que você passe por essa prática com curiosidade e gentileza, consigo mesma e com sua mãe. Sem julgamentos, sem apontar dedos, sem culpa. O exercício aqui é explorar, com leveza.

Vamos seguir esse papo lá no fórum.

Seguimos juntas.


Anna Haddad é fundadora da Comum. Escreve pra vários veículos sobre educação, colaboração, novos negócios e gênero, e dá consultorias ligadas à comunidades digitais e conteúdo direcionado pra mulheres.