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#10 Com açúcar, com afeto: um relato

Comer também é se acolher

Ainda pequena, minha mãe me sentava frente à televisão e colocava no meu colo uma bacia de plástico repleta de folhas verdes, cenoura, tomate. Eu comia fascinada. Comia fascinada porque o momento me propiciava isso: via o cuidado com que a minha mãe selecionava cada verdura, na TV passava meu desenho favorito, fazia um calorzinho gostoso de outono lá fora. Cresci adorando salada, legumes, frutas e verduras e as pessoas achavam que aquilo era uma benção, mas era mais. Até hoje, ver no prato esse colorido me transporta instantaneamente àquele lugar de atenção e zelo.

Cresci e a comida e o comer foram envenenados por uma porção de pesos: a estética, as dietas, os carboidratos malignos, as calorias contadas, o alimento vilão da estação. A abóbora deixou de lembrar casa de avó e passou a engrossar a perna. O abacaxi foi de suco que refresca para a fruta capaz de me ajudar na batalha contra as celulites. Parei de me alimentar cuidando de mim e passei a me alimentar olhando para o que desejam que eu fosse: um corpo que se encaixasse no padrão.

Ano passado, uma depressão que já me acompanhava há um ano resolveu me derrubar. Paralisei. Não conseguia levantar, tomar banho, ler. Não queria comer. Foram três longas semanas que me levaram ao hospital algumas vezes. Na segunda vez, o médico disse a minha mãe que não comer era a forma que eu tinha encontrado de morrer. Eu vi minha mãe chorar um choro triste, um pouco culpado. “Eu falhei”, ela disse. Do lugar em que eu estava — e contando com o apoio e amor de uma rede afetuosa — transformei aquele abandono em algo poderoso: me peguei pela mão e decidi cuidar de mim. A trilha de Autocompaixão, da Comum, esteve comigo nesse processo e foi essencial para que eu conseguisse sair do poço impulsionada por uma mola potente.

Ali brotou uma relação com a comida que eu nunca tive: ao me amar, passei a olhar com cuidado para o que me alimentava. Troquei os pacotes industrializados por alimentos com histórias — da pequena produtora da rua ao agricultor familiar da fazenda da região. Comecei a ir à feira e escolher eu mesma cada fruta, verdura, legume. Converso com feirantes, falo sobre colheitas, receitas, especiarias. Enchi de cor meus pratos porque queria ser colorida por dentro. Aprendi a fazer da comida remédio e hoje coleciono combinações de chás curativos, uma lista de super-alimentos para cada enfermidade e potinhos que são quase poções mágicas.

Também desenvolvi uma escuta mais genuína para os recados que meu corpo mandava e assim iniciei um processo investigativo que só me traz benefícios: por que quero comer esse doce? Por que motivo não quero comer esse prato? Estou comendo rápido demais por alguma razão?

Para além do controle, o objetivo de me questionar assim é o conhecimento de mim mesma. Sou feita de histórias e a forma como me manifesto é meu corpo e mente tentando expressar um punhado delas pro mundo.

Por isso, hoje, sei que a canja quentinha da avó para curar a ressaca me faz lembrar dos exageros no começo da vida adulta e do riso contido que ela carregava quando dizia “Deixa a menina se divertir”; o chá de limão com alho da minha mãe para curar a gripe também traz à memória um momento raro de afeto dela comigo quando já crescida; Coentro me lembra quando morei no México e, talvez por ter sido uma experiência tão gratificante, queira colocá-lo em tudo.

O doce — que antes só trazia o prazer instantâneo seguido da culpa — tem um lugar especial nessa história toda. Para mim, aqueles preparados na hora são sinônimo de afeto, de mãos que cuidam e preparam com amor. E foi na pâtisserie que encontrei a forma de transbordar essa autocompaixão para os outros. Criei um projeto que chama Fika e que prepara pequenos doces para que amigos e gentes queridas que me cercam recebam vez que outra um docinho para acompanhar uma pausa, um café, um chá. É minha forma de pedir que se cuidem, amem, não se culpem. Que comam como forma de amor, de se amar.

Desde a crise depressiva, substituí autocríticas por autoconhecimento.

Não conto calorias, mas penso em necessidades emocionais e nutricionais. Em vez de olhar para minha fome e meus desejos como algo ruim, olho com curiosidade. Um exemplo recente: como vegetariana no início de uma transferência para o veganismo, percebi que me julgava bastante pelas vezes que, durante esse percurso de adaptação, sucumbia a um desejo por doces que contivessem leite ou ovos na receita. A compaixão que eu nutria pelos animais não estava sendo aplicada a mim mesma. Nisso, comia com culpa. Antes desse texto ir ao ar, comentei sobre o processo lá no fórum e recebi uma resposta da Melissa Setubal que me fez colocar o pé no freio.

Gabrielle, talvez você possa continuar essa sua investigação refletindo sobre os motivos das regras que você criado para sua alimentação. A gentileza e compaixão que talvez você queira praticar com outros seres animais deve considerar também você mesma, né?

Enquanto a gente continua ampliando as opções veganas com nosso poder de compra e com nosso ativismo, ao mesmo tempo, vale você reprogramar que talvez comer a sobremesa não vegana não seja você cedendo ao julgamento, e sim você percebendo que ao invés de seguir uma regra, você pode seguir uma referência: quanto menos bicho melhor, mas se tiver bicho, que eu honre a vida desse ser naquele momento que está comendo o que ele te ofereceu da forma mais contente e com o coração e paz possível.

Usa a técnica do 80/20, e talvez se liberte da etiqueta "sou vegana". Seja um ser humano que faz uma escolha alimentar a cada refeição da melhor forma que puder diante das circunstâncias. Talvez tire muito desse peso todo.

De nada adianta se minha ética é uma tirana que não abraça meu tempo, processo e erros. Tomando consciência disso transformei o julgar num movimento mais autocompassivo e, aos poucos, fui desconstruindo também essa culpa. Tudo bem comer o pudim com leite condensado enquanto ainda não consigo adaptar a receita para os ingredientes veganos. Se meu paladar ainda não se acostumou totalmente às mudanças na rotina, não há problema em ceder para uma receita que me ativa afeto quando eu precisar de acolhimento. Não é sobre ser autocondescendente, mas sobre reconhecer os momentos em que precisamos deixar a severidade de lado e acolhermos a nós mesmas para que não sucumbamos. Foi nesse processo de gentileza e cuidado comigo mesma que intensifiquei o meu cuidar de outras mulheres.

Por isso, quero propor uma prática para os dias que seguem. Vem comigo? Espero vocês no fórum para trocarmos vivências.

Prática sugerida: sente-se com os sentimentos antes do jantar

Na próxima vez que estiver prestar a ir à mesa, antes de iniciar a refeição, olhe para dentro e perceba quais emoções vem à tona: ansiedade, medo, culpa, euforia, bem-estar, alegria? Seja a emoção boa ou ruim, pare por alguns segundos e aceite-a. Tente não lutar contra as emoções negativas, caso venham.

Abrace a experiência e convide-a para estar com você por alguns minutos. Pode parecer bobo, mas esse simples gesto de aceitação irá liberá-la do esforço que fazemos ao resistir. Assim, fica mais fácil de escutar as necessidades que esse sentimento veio lhe trazer.

Pergunte-se que tipo de sentimento é esse? De onde ele vem? Por que apareceu justamente antes dessa refeição? O que há por trás dele? Qual necessidade real esse sentimento veio mostrar?

Depois da refeição, coloque atenção na experiência. Como você se sentiu depois de acolher este sentimento? Conseguiu entender a real necessidade que ele veio trazer? A conversa consigo mesma trouxe uma refeição mais pacífica?

E, se possível, lembre-se, quase como um mantra, que nosso corpo carrega uma sabedoria inerente. Basta que paremos um pouquinho para escutá-lo.


Gabrielle Estevans é jornalista, editora de conteúdo e coordenadora de projetos com propósito. Nessa trilha, é editora-chefe, participante e caseira.