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#12 Limites: um ato de amor próprio

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Acho que devemos nos separar, eu disse.

Como assim?  —  ele respondeu, surpreso.

Você só me dá suas quartas e quintas. Eu quero os sábados e os domingos de manhã.

Pra mim parecia óbvio, em toda a realidade dessa afirmação, meio categórica, meio metáfora.

Não éramos namorados. A gente estava só ficando. Eu saía com outras pessoas, ele também, ambos estavam cientes. Eventualmente, começamos a convergir: nos aproximamos mais, confidenciamos mais, tivemos um desentendimento que serviu para mostrar a qualidade do diálogo entre nós. Paulatinamente, aquela casualidade toda tomava os contornos de um relacionamento sério.

Até que apareceu uma pessoa nova, para a qual a atenção dele rapidamente se direcionou. Eu estava obviamente bastante apaixonada e me vi perdendo acesso a algumas coisas  —  o tempo que passávamos juntos, suas conversas no WhatsApp de madrugada, os convites pra sair. Ele não dava nenhum indicativo de que queria terminar o que tínhamos, mas eu me vi entrando cada vez mais nas quartas feiras e cada vez menos nos sábados.

Isso me deixava bastante frustrada, magoada, triste e irritada. Eu simplesmente não queria todos esses sentimentos ruins e tinha plena noção de que ele não abriria mão da solteirice, muito menos da garota nova no pedaço. Então fiz a incomodada e me retirei. Era uma delícia estar com ele? Sim. Poderia ter “deixado rolar” para ver onde chegaríamos? Também. Eu adorava tudo  —  os papos, cozinhar junto, o sexo, o carinho. Mas eu não estava disposta a ser a segunda opção; não estava nos meus planos ser preterida (mesmo que nossa relação fosse estritamente casual). Nós dois claramente não estávamos na mesma página. Aquele era meu limite. Ele não estava faltando com respeito comigo, eu não estava me sentindo traída  —  apenas não queria o arranjo daquela forma porque não me fazia bem.

Meu ponto com essa anedota é que muitas vezes a gente trata limites como barreiras que devem ser impostas para evitar violações graves do espaço e até da dignidade do outro. Muitas vezes desconsideramos invasões pequenas e cotidianas que trazem consigo sentimentos ruins, gerando uma sensação cumulativa de negligência.

Toda vez que ele não respondia minhas mensagens porque estava com outra garota ou que deixava de me chamar pra fazer algo no fim de semana, eu me sentia mal. Não por encarar outra mulher como ameaça, mas sim porque percebia estar obviamente mais apaixonada por ele do que ele por mim.

Ciente de que meu “ficante” não estaria disposto a entrar numa relação monogâmica porque aquele era um limite dele, eu preferi estabelecer o meu — através de uma atitude que, apesar de drástica, me preservaria. Não foi tranquilo e pra ser sincera doeu um bocado, mas eu prefiro essa dor curta e imediata do que o martírio de ser lentamente atingida por aquela sensação cotidiana de amar sozinha, até sabe-se lá quando.

Além disso, estabelecer limites é extremamente importante dentro de qualquer relacionamento: trabalhista, amistoso, fraterno, familiar.

Embora no exemplo eu tenha rompido meu caso amoroso, isso não é obrigatório. Conversas abertas e diretas que esclareçam as necessidades de todas as partes envolvidas costumam dar conta do recado. É importante sempre tentar enxergar o outro lado com empatia, mas não tenha medo de ser ou soar um tanto egoísta. Como já vimos em conteúdos anteriores aqui da trilha, é frequente que mulheres se sacrifiquem muito mais e esgarcem sua trama emocional para manter relações inteiras  —  ao invés de dividirem o esforço com seus parceiros.

Manter os nossos limites bem delineados é um ato de amor próprio — e também um ato de amor com o próximo. O limite dá segurança e tranquilidade; pessoas confiantes e calmas amam com mais amplitude, estão ali, presentes, de coração mais aberto. Soa até irônico, não soa? Achamos que quanto mais cedemos ou quanto mais prendemos, mais seguras estaremos numa relação. Quando, na verdade, quanto mais soubermos onde nossas bases estão fincadas, mais lúcidas estaremos sobre o que podemos oferecer, até onde podemos ir, o que queremos aceitar. 

Contudo, é importante não confundir limites com passos para fora da zona de conforto. Estagnar nossos relacionamentos porque tudo parece incômodo pode nos transformar em pessoas sem tolerância a frustrações — além de tolher as habilidades de resolver conflitos. Também há passos dentro de relacionamentos que devem ser tomados em conjunto (morar junto, ter um filho, conhecer a família do outro, planejar uma viagem grande), quando todos se sentem suficientemente preparados para um novo desafio. Muitas vezes, fazer algo com frio na barriga é uma experiência que abre novas perspectivas  e traz consigo aprendizado.

Identificar um limite pode parecer difícil, mas não é. Requer atenção e prática — para que vire rotina — mas é mais fácil do que imaginamos — ou do que gostariam que acreditássemos que seria.

Pense em tudo que te deixa insegura, apreensiva, agitada, triste, nervosa, irritada, brava. Tudo que faz você se sentir mal, que leva sua autoestima lá pra baixo. Leve essas questões para quem você ama: “quando você fica no celular enquanto estamos jantando, eu me sinto ignorada”. “Quando você passa o dia todo sem falar comigo, me sinto desinteressante”. “Quando você me chama pra sair de última hora, sinto que eu fui sua última opção”. É importante expor que pode até não ser intencional da parte da outra pessoa, mas o resultado final daquela ação te deixa emocionalmente prejudicada.

Este movimento de diálogo é imprescindível para manter seu eixo interno — não se desequilibrar quando sua confiança é cotidianamente atacada é uma tarefa de Sísifo — aquele mito grego em que se empurra uma pedra pesada morro acima para, já lá no topo, ver a gravidade agir, a pedra cair e ter de empurrá-la novamente, dia após dia.

Mas vale a pena. 

Nossa sugestão de prática

Para começar, precisamos lembrar que todo limite expressa uma necessidade não atendida. É o outro lado da moeda. E não só uma necessidade que não foi atendida, mas que não foi atendida continuamente em uma relação ou não tem sido atendida na sua relação presente e precisa ser para que você esteja feliz.

Então, desenhar um limite tem tudo a ver com se conhecer, saber se ouvir — coisas que já andamos explorando por aqui, nos textos anteriores. Claro que as coisas não acontecem em sequência. É tudo junto e misturado. Então vamos lá, praticar nos escutar, entender necessidades não atendidas e desenhar limites.

Escolha duas relações para examinar. Podem ser presentes, ou do passado, não importa. Agora, pense em duas situações, uma de cada relação, que te fizeram muito mal. Que te magoaram, te angustiaram, ou fizeram essa relação ficar abalada, acabar. Em algo que acontecia com freqüência e te desgastava. Escreva essas duas situações, uma ao lado da outra.

Agora, tente identificar se algum limite seu estava sendo ultrapassado, em ambos os casos. Entenda limite como algo que não podia acontecer e aconteceu. Resuma em uma palavra (uma para cada uma das situações, das relações). Assim:

Existia violência na relação, e isso para mim é um limite.

Ele me desrespeitava na frente de outras pessoas, e isso para mim é um limite.

Ele não me ouve quando eu falo de algo importante para mim, não me dá crédito. Isso para mim é um limite.

A gente não transava mais. Isso, para mim, foi um limite.

Agora, tente enxergar quais as necessidades não atendidas que estavam por detrás desses limites. O que de muito valioso, importante para você naquele momento, contexto e relação em especial estava sendo atropelado, invalidado, não visto. Assim:

Preciso de uma relação com respeito e tranquilidade.

Naquele momento, precisava de mais escuta e de reconhecimento.

Para mim, sexo é importante em uma relação, e eu precisava de uma vida sexual ativa e saudável.

Não julgue as necessidades e limites que você está trazendo à tona. Nem se você poderia ceder ou não, se eles são perenes ou não. Deixe vir à tona.

Por último, desenhe, no mesmo papel, o formato de um corpo. Ao redor dele, escreva palavras que representem os limites e as necessidades que você descobriu, já sabe, ou está refletindo sobre: carinho, acolhimento, reconhecimento, admiração pelo outro, um sexo bom, impulsionamento profissional, e daí por diante. Se sentir vontade, siga fazendo essa reflexão e escrevendo ao redor do contorno do seu corpo o que vier à mente: quais são, hoje, seus limites? O que é que precisa estar claro dentro de uma relação, que é necessário, que precisa existir para que você esteja bem e se sinta atendida afetivamente?

O caminho é longo, mas nos tatearmos e desenharmos um contorno claro é bonito e bem-vindo.

Seguimos juntas.